1




Na sala de espera de um cinema, um homem dirigiu-se ao bar e pediu um café, enquanto a alguma distância uma mulher se entretinha a ver os cartazes que anunciavam os próximos filmes. Ele chamava-se Armando e ela Artemísia.

Saído dos lavabos, um segundo homem, Arnaldo, seguiu para o bar e, reconhecendo Armando, cumprimentou-o efusivamente.

A conversa ruidosa entre os dois chamou a atenção de Artemísia que, de longe, reconheceu Arnaldo. Acenou e logo a seguir foi cumprimentá-lo.

Feita a apresentação de Armando, Artemísia e Arnaldo falaram de banalidades, perguntando por este e por aquele.

E quando Armando se preparava para falar sobre o filme, Arnaldo, que acabara de ver a fita, deu meia volta, quase sem se despedir, e desapareceu logo a seguir por entre as dezenas de pessoas que entretanto tinham chegado e se aprestavam para entrar na sala.

Artemísia e Armando ficaram entregues um ao outro. Nos primeiros momentos, olharam-se sem saber o que fazer ou dizer. Era a primeira vez que se encontravam, mas tudo indicava que veriam o filme juntos. A amizade comum com Arnaldo seria suficiente para evitar que fosse cada um para seu lado.

Como não tinham tema de conversa, Armando disse sem grandes cuidados:

- Podias ter trazido outros sapatos!

Artemísia hesitou uns segundos, olhou-o como se não compreendesse os motivos de tão súbita familiaridade, mas recompôs-se e acabou por replicar, embora sem disfarçar a surpresa:

- Não me digas que os meus sapatos te incomodam... - E logo a seguir, num tom de voz mais desembaraçado: - És sempre assim tão descarado e ofensivo?!

- Só em situações especiais - retorquiu ele.

- Nem sequer rodeaste a questão...

- Gosto de ir directo aos assuntos...

- De qualquer maneira, não me conheces o suficiente para falares nesse tom.

- Mas só falando nesse tom posso conhecer-te melhor.

Artemísia estava de braços cruzados e olhos fixos em Armando. Defendeu que não era possível conhecer as pessoas de um momento para o outro, mas ele retorquiu que era preciso ganhar tempo, acelerando e encurtando distâncias nas conversas.

Na opinião de Artemísia, porém, as conversas não ajudavam grande coisa, porque as pessoas eram geralmente superficiais e esquivas. Só se tinha acesso à verdadeira face de alguém no dia a dia, na vida concreta, nos momentos difíceis...

Armando defendeu que as palavras eram essenciais, mesmo quando não davam um retrato fiel da pessoa. Porque também se podia conhecer alguma coisa ou alguém através da mentira.

Mas ela replicou que não era bem assim, que a mentira afastava as pessoas do seu verdadeiro caminho e que, por isso, as palavras eram uma perda de tempo.

- Estás a partir do princípio que as palavras só sabem mentir... - disse Armando.

- Se não mentem, servem bastante para contornar a verdade - disse ela.

- Mas as palavras são um instrumento para a primeira aproximação entre as pessoas!

- Acho que não, o olhar está geralmente primeiro...

- O olhar tem mais a ver com o cinema...

- E alguma vez tiveste dúvidas de que o cinema é a grande verdade que podemos encontrar na vida?

Entretanto, ouviu-se o sinal para o começo do filme e ambos avançaram para as escadas, enquanto Armando procurava os bilhetes no bolso da camisa, das calças, da camisa outra vez...

À medida que subiam para a sala, Armando quis saber de onde Artemísia era natural, mas obteve uma resposta evasiva sobre o filme que se preparavam para ver, o que o levou a pensar que aquele não era o melhor momento para abordar o assunto.

O importante, agora, era não deixar fugir Artemísia, não fosse ela encontrar alguém conhecido e relegá-lo para segundo plano, deixando-o sozinho às voltas numa sala escura entre as sombras das cabeças mergulhadas no brilho do Verão.

Mas ela apressou-se a encontrar lugar e a fazer-lhe sinal para que se sentasse a seu lado.

- Espero que não voltes a meter-te com os meus sapatos... - disse com um sorriso malicioso.

- Resolvemos isso depois do filme - respondeu ele.

Nessa altura, as luzes da sala diminuíram de intensidade e o écrã encheu-se de claridade e movimento.

Os dois não voltaram a falar. A proximidade a que se encontravam deixava-os protegidos de qualquer aspecto menos previsível.

Por mais atenção que desse ao filme, Armando não conseguia concentrar-se. Estava sempre a pensar em Artemísia. Percebeu que seria ridículo não ter ideias, depois, para trocar impressões acerca do filme. Poderia alegar umas quaisquer dores de cabeça, mas isso deitaria por terra a possibilidade de a convidar para tomar um copo a seguir à sessão.

Armando espiou Artemísia pelo canto do olho e viu-a inclinada para o lado oposto ao seu, com a mão sob o queixo, sem olhos para outra coisa no mundo senão para o que acontecia na tela. Tentou adivinhar em que estaria ela a meditar, mas naquele momento não conseguiu. Havia pessoas cujos pensamentos percebia com relativa facilidade, seguindo mesmo a sua evolução, hesitações e múltiplas derivações, mas Artemísia não era uma dessas. Muito mais numa sala às escuras onde não era possível ver os pormenores da sua pele, da sua boca, das suas mãos, elementos que formavam um conjunto essencial para a compreensão dos contextos.

As pernas eram uma pista, conforme estivessem afastadas, cruzadas, aconchegadas, encolhidas, estendidas, etc. Sem grande esforço, podia observá-las, apesar do escuro, devido à ligeira claridade que deslizava do écrã para o pavimento, criando uma névoa subtil que acendia os objectos a partir do nada, a partir da escuridão impenetrável.

Artemísia estava com a perna direita cruzada sobre a esquerda, imóvel, aparentemente serena e esquecida dos sapatos. Entretanto, com o passar do tempo, o corpo foi-lhe amolecendo e, a dado instante, o seu braço tocou no de Armando, sem que nenhum deles tivesse a preocupação de se afastar, até porque a distância entre as duas cadeiras era exígua.

Em poucos segundos, tornou-se evidente que ambos analisavam com rapidez vertiginosa o significado do que estava a acontecer entre os seus dois braços, o primeiro contacto, uma espécie de primeiro beijo proibido no sótão escuro da adolescência.

Pensavam, olhando fixamente o ecrã. E quanto mais fixamente observavam as imagens gigantes e luminosas do movimento na tela, mais concentrados estavam no ponto exacto em que os seus braços se uniam.

O tempo em que se mantiveram imóveis, olhando o desconhecido para lá da tela foi decisivo para tudo o que viria a suceder a seguir. Se qualquer deles tivesse recuado, Artemísia e Armando ainda hoje não se teriam conhecido.

O mútuo consentimento do gesto, da posição dos braços, da pressão nos músculos, encheu de calor a aproximação entre os dois. Sem palavras, de facto, havia qualquer coisa em Artemísia que cativava, que prendia, que convencia. E, em Armando, a mudez inquietava, despertava interrogações, acelerava os intervalos entre pressentimentos.

O contacto físico deu-se numa zona da pele sem grão de areia, sem veia saliente, sem tecido crispado. Era doce o tecido que unia os seus braços sob o feixe solitário de luz que atravessava a sala de um extremo ao outro.

Para Artemísia, o braço de Armando era um cinema que se tinha desprendido da tela iluminada e se lhe colara à pele sem avisar. Não se preocupou com o que ele pensaria. Porém, manter o contacto físico seria fazer passar uma mensagem que Armando naturalmente teria toda a liberdade de interpretar...

Por seu turno, ele não queria dar a ideia de que estava disposto a aproveitar-se de uma situação aparentemente fácil, ou casual. Uma vez que não conhecia Artemísia, era-lhe difícil perceber se o toque dos braços era intencional, ou não. Mas, se se afastasse, poderia dar a ideia de que não queria envolver-se, ou que lhe desagradava o seu contacto. O que não era verdade.

A forma como ela reagira aos seus comentários sobre os sapatos não havia sido totalmente desanimadora. Ao menos, dera-lhe hipótese de argumentar sem inibições, o que garantia, à partida, um bom começo.

Armando adivinhara qualquer coisa nos olhos dela. Qualquer coisa de afirmativo, de aventureiro, de arriscado, de inadvertido, por onde seria possível entrar sem necessidade de recorrer a esquemas pré-concebidos. Mas ele também não era de esquemas. Quando os notava nos outros, afastava-se prontamente. E se, por algum motivo, ele próprio os fabricava, não hesitava em desistir de tudo, mesmo que acabasse por sair prejudicado.

Armando pensou se o que estava a sentir não seria simples ilusão. A própria Artemísia estava a seu lado no contexto de um filme que decidira ver e não exactamente no contexto de um encontro originalmente marcado com ele. Por isso, o mais natural era que o toque entre os seus braços fosse espontâneo e casual. No entanto, essa situação passaria a fazer parte da história de ambos. Independentemente da dimensão e das consequências do seu impacto, Artemísia e Armando ficariam marcados (em maior ou menor grau) pela escuridão imprevista de uma sala de cinema. Pela forma como ela os uniria, ou afastaria.

Artemísia fez as contas sobre o tempo em que o seu braço se encontrava encostado ao de Armando. "Se isto durar mais de dois ou três minutos, será caso para desconfiar...", pensou ela consigo mesma.

Passado mais ou menos esse tempo, sem que a situação se alterasse, ela considerou a hipótese de se levantar e vir embora, mas enquanto analisava as várias possibilidades, concluiu que, se o fizesse, poderia interferir no destino, de forma drástica, injusta e precipitada. Em alternativa, pensou ir à casa de banho, o que lhe abria portas para uma outra solução: no regresso, perder-se-ia e não encontraria a sua cadeira, o que a obrigaria a sentar-se noutro lugar até ao fim da sessão; depois, poderia sempre explicar mais tarde o percalço a Armando que, decerto, não levaria a mal o sucedido.

Mas Artemísia, de repente, sentiu que poderia estar a ir longe demais. Porque um tal estratagema seria capaz de os afastar irremediavelmente. As relações entre as pessoas nem sempre obedeciam à lógica...

Por isso, continuou sentada, como se tivesse falta de ideias, falta de planos, falta de sítios para onde ir... - muito longe do filme que lhe deslizava perante os olhos.

Por seu lado, Armando chegou à conclusão que o melhor seria pressionar um pouco mais o seu braço, para ver se Artemísia reagia. E em que sentido o faria. É que se, até ao momento, o contacto podia ser encarado como fortuito, depois de um segundo momento de pressão mais óbvia, a atitude que ela tomasse não deixaria margem a quaisquer dúvidas. Então, os campos de manobra de cada um seriam claramente mais reduzidos.

Armando fez o que pensou. E a reacção de Artemísia foi aproveitar para ajeitar o cabelo exactamente com a mão daquele braço, tendo-o feito no instante preciso em que a pressão do braço de Armando aumentou, o que o impediu de tirar qualquer conclusão, uma vez que o gesto dela foi perfeitamente sincronizado com a decisão dele.

Depois, Artemísia não voltou a colocar o braço na mesma posição, deixando Armando manifestamente à deriva, sem saber o que fazer, se recuar, ou se procurar aproximar-se mais do braço que ela mantinha encolhido sobre a anca.

Armando receava ir longe demais porque ela, de repente, podia dar um salto na cadeira e acusá-lo de estar a assediá-la, chamando o responsável pela sala e indo depois queixar-se à polícia. Havia gente para tudo. E a verdade é que ele não sabia até que ponto Artemísia seria capaz de ir.

Para não estragar o serão, preferiu esperar por novo movimento dela, a ver se os braços voltavam a tocar-se, a ver se recebia uma segunda mensagem, a ver se o primeiro contacto não fora simples acaso.

Artemísia, por seu turno, esperava apenas pelo instante em que voltaria a dar um jeito no cabelo, pousando depois o braço de novo junto ao de Armando, procedendo sempre com um ar de aparente naturalidade, para que ele não tivesse hipóteses de descodificar a sua intenção. Ela não queria que ele se precipitasse, nem que desistisse. Para o conhecer, havia que mantê-lo na corda bamba pelo maior período de tempo possível. Só assim poderia estudar as suas oscilações de carácter, as suas hesitações intelectuais, as suas deambulações comportamentais.

Ele queria evitar que um eventual segundo momento de sincronia no movimento dos braços lhe fosse favorável. Por isso, rodeou-se de precauções e ficou a observar Artemísia pelo canto do olho.

Quando viu que ela levava de novo a mão ao cabelo, aproveitou para se endireitar no assento, ao mesmo tempo que punha as mãos entre as pernas, evitando sair embaraçado da situação.

O braço dela ficou imóvel sobre o apoio da cadeira, desprotegido e abandonado. Ele sentiu que vencera, daquela vez. Por isso, não valia a pena estar com grandes rodeios na próxima oportunidade.

Logo a seguir, pôs o braço junto ao dela, tocando-lhe ao de leve, e esperou pela borrasca, pelo grito, pela recusa!

Mas ela não o rejeitou, embora também não tivesse deslocado o braço um milímetro na sua direcção. Se tivesse feito esta última opção, poderia dar a entender que o aceitava sem margem para dúvidas, que o queria, que o desejava.

Na prática, Armando continuava com poucas indicações, enquanto ela achava que o facto de ele ter tirado as mãos de entre as pernas para voltar a assentar o braço junto ao dela não acrescentava muito ao que conhecia dele. Só podia tentar interpretar alguma coisa em função do pouco tempo que ele demorara a reagir à sua aproximação. No fundo, denotava uma insegurança típica.

Depois dos movimentos de braços que se tocavam e afastavam, nenhum deles voltou a ter dados novos e concretos sobre o outro. Ambos optaram pela segurança das suas posições. Os bilhetes que haviam comprado para a sessão determinavam com rigor os milímetros reservados ao descanso dos braços de cada um.

Até ao fim da película, os dois ignoraram-se ao lado um do outro. Parecia que nada alguma vez podia vir a acontecer entre eles. Nem contacto de braços, nem pensamentos secretos, nem gestos cautelosos avançando no rumor das sombras. Davam a ideia de um casal que subitamente se zangou sem motivo, não sendo qualquer deles capaz de propor a reconciliação durante os próximos tempos. Os corpos ficaram imóveis, por tanto tempo quanto a escuridão permitia. Só a luz que rasgava a sala tremelicava metalicamente.

Mas a sua zanga era só aparente. No fundo, Artemísia e Armando acabavam de atingir um nível de entendimento ao alcance de poucos. Se não tinham motivos imediatos para se aproximarem definitivamente, também não os tinham para se afastarem, ou para se antagonizarem, de forma irreversível. A serenidade que se estabelecera no espaço comum ao braço de um e de outro era o sinal evidente de que tinham todo o tempo do mundo para se conhecer.







2




Depois do filme, Artemísia e Armando desceram as escadas pausadamente, por entre os vultos acabrunhados que abandonavam a sala. Foram atravessando o átrio com ar de quem media todas as hipóteses do capítulo seguinte.

À porta, ele perguntou se ela queria ir a qualquer sítio tomar alguma coisa. Artemísia sorriu, ligeiramente, sem responder. Ele interpretou a sua reacção de modo favorável.

Saíram para a rua e puseram-se a andar no passeio, enquanto procuravam com os olhos um táxi livre. De vez em quando, paravam, observavam a rua, voltavam a dar uns passos e anulavam a marcha, de novo, até que Artemísia deu a entender que estava a ficar demasiado tarde e que no outro dia teria que trabalhar.

Ele tentou demovê-la, dizendo que não demorariam, mas ela insistiu que seria melhor deixarem a conversa para outra ocasião.

Não sabendo ainda como conseguiria os seus intentos, ele ofereceu-se para a levar a casa, com a convicção de que os próximos minutos seriam decisivos.

Pouco depois, surgiu um táxi desocupado. Entraram, sentaram-se e Armando a pressou-se a dar a sua morada ao motorista.

Artemísia reagiu prontamente. Disse que não, disse que era prematuro irem para casa dele àquela hora da noite, disse que mal se conheciam, disse que já era demasiado tarde, disse que no dia seguinte precisava de se levantar cedo porque tinha um assunto importante a tratar - um caso inadiável. Armando não se deixou comover, respondendo-lhe que tomariam apenas uma bebida, ouviriam música e, depois, ele chamaria outro táxi para a levar a casa.

Contudo, ela não queria ceder sem mais nem menos. Até porque, vendo bem as coisas, não conhecia Armando de parte alguma. Só sabia que ele era amigo de Arnaldo que, por sua vez, era seu conhecido. A partir daí, tudo o que pudesse acontecer era simples aventura.

- É melhor tomarmos a bebida noutro dia - disse Artemísia. - É melhor ouvirmos música da próxima vez, prefiro que me leves a casa, prometo ser sempre tua amiga...

Mas Armando via em cada palavra dela uma brecha para a realização do desejo que acalentava no íntimo. Se Artemísia não quisesse mesmo passar a noite com ele, daria ordens ao condutor para a levar a casa ou, em última instância, saltaria do táxi em andamento. Não seria a primeira a fazê-lo. Por isso, tudo indicava que Artemísia estaria apenas a fazer-se difícil, para que ele não ficasse com a ideia de que ela aceitava o primeiro que lhe aparecesse.

- Não me importo de sair contigo um dia destes - insistia ela. - Podemos jantar num bom restaurante, vamos tomar um copo, dar um passeio à beira-mar. Hoje, é chato. Vê se percebes, nem sei quem tu és e tu também nunca me viste mais branca...

Armando achou que era importante responder-lhe de forma convicta:

- Não se conhece ninguém num jantar, numa ida a um bar para tomar um copo, num passeio à beira-mar para ver a caca das gaivotas... Nessas alturas, as pessoas escondem-se atrás das palavras e das frases feitas, montam esquemas de defesa, utilizam respostas arquitectadas. No improviso, na espontaneidade, no inesperado é que está a verdadeira sabedoria, o conhecimento autêntico da realidade.

Artemísia procurou contrapor, dizendo que nem toda a gente era igual, que era possível ser sincero e aberto, dando tempo ao tempo. Se havia momentos em que as pessoas eram hipócritas e oportunistas, também era verdade que havia ocasiões em que cada um podia mostrar a sua verdadeira natureza, o seu verdadeiro modo de ser, a sua verdadeira face.

- O que podes sentir por mim é uma atracção superficial - argumentou ela. - Seria muito mais saudável que esse sentimento pudesse ser aprofundado com calma. A vida não acaba hoje. Afinal, que prazer é que tens em estar com alguém contra a sua própria vontade?

Armando respondeu-lhe que nenhum deles estava ali contra vontade. O que se passava era que ela queria estar com ele noutro dia, enquanto ele achava que não valia a pena estar a perder tempo com coisas que tinham que acontecer mais cedo ou mais tarde.

Ela respondeu que acelerar a realidade é sinal de que se tem medo da morte. E disse mesmo que Armando não estava preparado para o que pudesse acontecer-lhe de um momento para o outro, uma surpresa, uma tragédia. Insistiu que ele não saberia enfrentar uma eventualidade que escapasse ao seu espírito calculista. E foi mais longe:

- No fundo, não queres estar comigo, mas com alguém que projectas em mim. Estás a confundir-me com um dos teus fantasmas! Não se pode desejar quem não se conhece. Só se especula, só se imagina... É isso que estás a fazer comigo. Estás a desrespeitar-me, estás a jogar-me num dos tabuleiros da tua matemática sem escrúpulos...

- Não penses que me fazes desistir atirando-me à cara teorias fabricadas em cima do joelho. A verdade é que não quero morrer sem te conhecer. Imagina o que seria ser atropelado amanhã e não ter chegado a saber quem tu és. Mas, se estivermos juntos e, depois, me acontecer qualquer coisa, ao menos vou mais experiente e realizado!

- Ao precipitares a vida dessa maneira estás a ir contra a ordem natural das coisas. E acabas por não saborear nada verdadeiramente. É preciso deixar que as situações façam sentido, é preciso dar espaço às emoções, de contrário elas tornam-se simples esquemas de sedução sem conteúdo...

Armando defendeu-se dizendo que não acelerava coisa alguma na vida. Esta é que já era acelerada por natureza. Toda a gente queria chegar em primeiro lugar a tudo. O espírito desenfreado de concorrência é que se tornava responsável pelas correrias que levavam à destruição! E acrescentou que se ambos não aproveitassem aquela oportunidade para estarem juntos, nada garantia que não surgissem outras pessoas nos seus percursos, interpondo-se entre ambos e fazendo com que nunca mais voltassem a encontrar-se.

- Quem faz a concorrência somos nós - argumentou Artemísia. Ninguém nos obriga a viver na vertigem. Pode andar todo o mundo a correr e eu estar muito bem sentada no meu sítio, sem me preocupar com o que vou comer no dia seguinte, ou com quem me vou encontrar dentro de horas...

- Se não formos competitivos, haverá sempre alguém que tomará o nosso lugar! E quando alguém toma o nosso lugar quer dizer que estamos mortos, que perdemos a corrida, que nos tornamos inúteis! Para que servirá alguém que nem seja capaz de ocupar o seu espaço, cedendo a outros as suas oportunidades? Devemos mostrar quem somos, também, e o que valemos, ao nível da afectividade. Tenho a certeza que este é o nosso dia, a nossa noite. Por mais que procures fugir, não conseguirás contornar a realidade.

- Mas o que é ser competitivo afectivamente? E o que é alguém tomar o nosso lugar? No mundo, o único lugar possível de ter é o corpo - e o seu movimento - como acontece agora neste táxi, sabendo que, dentro de momentos, poderemos já estar noutro sítio, poderemos já ter outros objectivos e desejos.

Ele replicou que o lugar é a nossa passagem pelos acontecimentos e que este é um processo que não se faz sem os outros. Sempre que envolva os outros, tudo o que se faz é competição, comparação, mensuração. Viver alheado disto é não intervir no rumo das coisas, é não ter capacidade de decidir sobre a própria vida. Quando se deixa que seja o tempo a mandar, cede-se o poder...

- Se eu levasse a sério o que estás a dizer, deixava de falar contigo já neste momento - respondeu Artemísia. - Na tua maneira de ver, tudo se resume à competitividade, ao imediatismo das relações, e aos teus olhos eu serei uma inútil e miserável se não encarar a vida na mesma perspectiva.

Armando defendeu-se dizendo que o pior jogo e o pior medo que se pode ter é recusar a vida, adiando as coisas, o que levou Artemísia a revirar os olhos, uma vez que o argumento não lhe deixava espaço para flexibilizar a posição.

Mas ao fim de uns breves instantes, ela voltou à carga, dizendo que não havia qualquer mal em gerir de forma ponderada as situações, as pessoas, as vivências, as ideias, as atracções. Uma pessoa podia transmitir uma determinada ideia a dada altura e pouco depois transmitir outra completamente diferente. Assim, nunca se conseguia saber com exactidão a verdadeira natureza de tudo o que nos rodeava, o verdadeiro alcance das situações, a verdadeira capacidade das pessoas.

Para Armando, no entanto, era precisamente por isso que não valia a pena estar à espera de certezas, de definições, de conceitos seguros. Porque a única realidade possível era a memória e a sucessão de acontecimentos que desfilavam diante dos nossos olhos.

- Tu fazes parte deste processo - defendeu Armando. - Encontrámo-nos hoje e estamos aqui como se nos conhecêssemos há anos, discutindo assuntos relacionados com as nossas formas de estar no mundo. Tens uma maneira de ver e eu tenho outra, mas o importante é assumirmos essa diferença de posturas com frontalidade e clareza. E se partilharmos essa diferença, seremos mais ricos e mais confiantes, interiormente.

- O problema é que nada nos une, nem sequer as ideias... - disse ela. - Não basta duas pessoas serem diferentes para terem uma relação mais íntima e profunda. Se formos para a cama, hoje, se fizermos amor, se fizermos sexo, se fizermos seja o que for, tenho a certeza de que não continuaremos a ver-nos. A minha ideia é tentar salvaguardar uma eventual boa relação no futuro. Mas estás desesperado e queres estragar tudo na primeira oportunidade!

Armando sentiu um secreto prazer ao aperceber-se que Artemísia fora ao ponto de referir-se explicitamente a duas ou três palavras decisivas para aquela noite: cama, amor, sexo! E procurou inverter os papéis que ambos protagonizavam, alegando que ela estava a ser demasiado drástica, uma vez que apostava no tudo ou nada. E passou ao papel de moderador, dizendo:

- Talvez seja bom duas pessoas com ideias diferentes procurarem níveis de entendimento mais íntimos. Porque o corpo não engana. Mostra sempre o que se passa com cada um. Nem sequer precisa de recorrer às palavras para dar a entender o que as pessoas sentem e pensam...

E, pela primeira vez, desde que se tinham metido no táxi, ela não refilou, não argumentou, não pediu para ser levada a casa. Ficou-se a observá-lo em silêncio, respirando fundo, medindo cada milímetro de reflexão, percebendo a súbita viragem no discurso dele. Via-se que procurava adivinhar os pensamentos de Armando e, ao mesmo tempo, procurava avaliar todas as possíveis consequências, todos os riscos, todos os cenários de uma resposta afirmativa.

E enquanto ela não atava nem desatava, ele acrescentou, para quebrar o gelo da dúvida:

- A culpa é dos teus sapatos!

As suas palavras abalaram a alma de Artemísia, superaram os últimos receios, venceram as últimas hesitações. Armando havia tomado a forma de outro corpo com o qual ela se identificava desde há muito.

Todavia, passados uns breves segundos, o mundo deu ideia de voltar à forma inicial, quando ela o olhou com ar repreensivo e disse que era melhor ir cada um para sua casa.

Mas Armando já tinha ganho alguma confiança na disputa, por isso, não estava disposto a retroceder. Em circunstância alguma. O último pedido de Artemísia, aliás, acabara por excitá-lo. Ao negar-se a levá-la a casa, ele sentia-se como se estivesse a comandar um rapto..., uma fuga..., um assalto.

E como se já não pudesse esperar mais pelo teste definitivo à sua posição de domínio naquela situação, pôs a mão sobre um dos seios de Artemísia. Se ela aceitasse o seu gesto, a noite estaria ganha. Se ela o rejeitasse, mesmo assim não desistiria..., porque a rejeição também fazia parte das conquistas!

No preciso momento em que a mão de Armando decidiu correr todos os riscos, sentiu-se que duas cabeças tinham passado a rolar desabridamente sobre um asfalto irracional e abrasador.

Ela olhou-o, ainda, reprovando o seu gesto, embora com cara de quem só podia aceitá-lo..., enquanto ele estudava já o passo que daria a seguir.

Armando percebeu que já não lhe escaparia a oportunidade de conhecer Artemísia completamente naquela noite e Artemísia sentia que seria impossível evitar as garras de Armando, desde o instante em que ele falara nos sapatos dela. Não era capaz de o repelir. Os diálogos tinham sido úteis, sobretudo para acabar com a hesitação interior que precede todas as decisões imprevistas e ousadas.

Se Artemísia escapasse naquela noite, depois daquele filme, uma vez dentro daquele táxi, era mais do que sabido que Armando nunca mais a veria em dias de sua vida. E se Armando não lhe caísse em cima, se não a cercasse, se não a convencesse de forma inequívoca, sem dúvida que ela nunca mais o enfrentaria.

Aquela era a noite incontornável, a noite de todas as certezas e evidências, a noite absoluta dos gestos nos quais se confrontam as maiores contradições.

Artemísia e Armando souberam-no a partir do momento em que ele colocou a mão no seio dela e ela nada fez para o impedir.

Ela sentiu-se invadida por uma quantidade de lagartixas irrequietas que avançavam sobre o seu corpo, os seus corpos, a sua coxa, as suas coxas, fazendo-a escorregar no assento do automóvel sob as luzes de Lisboa em movimento num barco desancorado nas ondas bravas do alto mar que fica muito para lá do Tejo e das suas sombras. E já só via fogo à sua frente, já só via remoinhos de vento no céu estrelado dos edifícios que desabavam sobre a sua cabeça, já só via serpentes de música transbordando no reflexo das vidraças que lhe atravessavam a sensibilidade.

- Espera..., espera... - dizia ela, receando que Armando a despisse completamente dentro do táxi.

Mas ele estava imparável..., não ouvia o que ela dizia, inebriado pelo roncar do motor nas curvas da cidade, indiferente a tudo o que estivesse para além do corpo de Artemísia, que vergava, progressivamente, visivelmente, disciplinadamente, ante o seu avanço.

- Tem calma..., tem calma... - repetia Artemísia, asfixiada, inundada de vento em chamas, afundada na loucura sem rédeas, preocupada com a possibilidade de o motorista se aperceber de alguma coisa e chamar a polícia, ou desviar-se da rota combinada, levando-os para um descampado e exigindo participar equitativamente no acto. Já tinha acontecido em outras alturas, com outras pessoas, em outras cidades...

Por isso, ela pôs as mãos no pescoço de Armando e obrigou-o a controlar-se, dizendo que sim com a cabeça, mas que só em casa dele, que só dali a mais uns momentos, que só em lugar seguro, que só se ele tivesse juízo...

Armando percebeu a mensagem e reagiu, recuou, amansou, endireitou a camisa e o cinto, ajeitou as calças entre as pernas numa das curvas do táxi, e olhou em frente para a cabeça do condutor, não deixando de observar Artemísia, porém, com o olho que lhe tinha ficado suspenso na parte esquerda da cabeça...

Entretanto, para não a perder, ou para evitar que ela se precipitasse para fora do carro quando este abrandasse ou parasse num semáforo, Armando deu-lhe a mão, apertando-lhe os dedos, afagando-lhe o pulso, enquanto ela libertava uns suspiros que se confundiam com o ranger dos assentos ao ritmo dos solavancos sobre o pavimento irregular.







3




Quando chegaram à porta do prédio em que Armando vivia, ele pagou o táxi, procurou a chave no bolso, puseram-se ambos à espera do elevador, entraram, subiram para o sétimo andar, ele abriu a porta do apartamento, acendeu a luz da entrada, depois a da sala de estar e disse para ela estar à vontade, indicando-lhe o sofá...

Logo a seguir, Armando desapareceu para outra divisão da casa, deixando Artemísia sozinha e ainda atarantada com o que lhe acontecera no táxi.

Enquanto ele não voltava, ela pôs-se a pensar no que fizera e arrependeu-se de ter ido tão longe. Sentia que Armando tinha capacidade para a atrair, mas estar ali numa casa completamente desconhecida, àquela hora da noite, com alguém que nunca vira antes, tinha a sua dose de risco.

E se Armando fosse um psicopata, um assassino, um violador?! E se, por outro lado, não fosse nada disto? Como saber a verdade, afinal? Para quem não tinha dados sobre a situação (e sobre a pessoa), em que poderia basear-se para decidir correctamente?

Pressentia que dificilmente sairia dali igual ao que entrara. O facto de Arnaldo conhecer Armando não queria dizer grande coisa, até porque ambos nem tinham demonstrado grande intimidade na altura em que se encontraram no átrio do cinema. Arnaldo podia ter conhecido Armando num qualquer encontro fugaz de café e pouco mais.

Artemísia sentiu um arrepio na coluna ao pensar no que se metera. Agora, era de certa maneira tarde para recuar. Se desaparecesse pela porta fora, sem mais nem menos, corria o risco de cometer uma injustiça irreparável, além de se prejudicar a si própria, porque, no fim de contas, talvez Armando fosse um homem interessante e ela estivesse ali apenas a exagerar a sua visão das coisas.

De qualquer maneira, o que se passara no táxi já lhe dava uma ideia do que a esperava.

Entretanto, ele desaparecera da sua vista e ainda não regressara. Estaria a preparar alguma? Artemísia voltou a recear pela sua segurança...

Mas, nesse preciso instante, ouviu-se a voz de Armando noutra divisão da casa a perguntar se ela queria tomar alguma coisa. Parecia que ele tinha adivinhado o que ela estava a pensar.

Artemísia respondeu que talvez mais tarde...

Quase logo a seguir, Armando apareceu na sala com ar de muito atarefado e disse que não se demorava. Apontou para a aparelhagem de som e sugeriu que ela escolhesse uma música...

Para Artemísia, era estranho que ele não tivesse pressa para continuar o que já havia começado. Seria Armando uma daquelas pessoas que preferem fazer amor em lugares públicos, como os táxis?... Ter-se-ia inibido perante as facilidades da aproximação entre os dois? Haveria algum outro motivo particular que ela desconhecesse?

Artemísia pensou que podia viver mais alguém na casa, uma hipótese que não tinha considerado desde que ali entrara. Talvez um familiar, um irmão ou uma avó..., sabia lá as relações de parentesco que Armando podia ter!

Levantou-se do sofá e pôs-se a caminhar pela sala de estar, aparentemente descontraída, olhando para os vários objectos e quadros nas paredes (todos impessoais, pouco esclarecedores, com mensagens inalcançáveis a um primeiro olhar), a ver se descobria alguma coisa sobre o homem em casa de quem se encontrava.

Depois, foi até à varanda e ficou-se a mirar a noite por uns momentos, os prédios em frente, as janelas sem luz, o pouco trânsito na rua...

A certa altura, ouviu puxar o autoclismo e acelerou o passo para o sofá, voltando a sentar-se, enquanto Armando regressava para junto dela, com as mãos ainda húmidas do sabonete, pedindo desculpa pela ausência.

- Não estava a sentir-me muito bem - explicou ele. - Deve ter sido alguma coisa que comi e que me caiu mal...

- Queres que te faça um chá? - perguntou Artemísia, com imprevista familiaridade, como se já conhecesse os cantos à casa.

Mas Armando replicou que não era preciso, que preferia tomar um uísque. E sentou-se junto dela, com o copo na mão, de pernas estendidas para a frente, ao mesmo tempo que lhe punha o braço por cima do colo, de forma natural e confiante.

Depois da maneira como ambos se haviam comportado no táxi ela não estava em condições de o repelir. E se viera até sua casa, embora apresentando argumentos discordantes, por alguma razão tinha sido. Além de tudo, o melhor era manter-se cautelosa, pois alguns dos seus receios ainda se mantinham.

- Podias beber um uísque, também - disse ele. - Ficava-te a matar com esses sapatos!

Ela riu e disse que não via a relação entre um copo de uísque e uns sapatos... A seguir, para ver como ele reagia, voltou à carga, dizendo que talvez fosse melhor ir andando, porque já era bastante tarde.

Mas ele deu um salto no sofá e respondeu que nem pensar nisso, até porque só agora os dois estavam ali sentados ao lado um do outro. Pediu-lhe desculpa pela demora que tivera na casa de banho e, como se para a compensar, foi mostrar-lhe o apartamento - a cozinha, o quarto de cama...

Depois do uísque, Armando ficou mais entusiasmado e tentou, de súbito, abrir a camisa de Artemísia. Mas ela protegeu-se instintivamente, como se o tempo que havia passado entre a viagem de táxi e o apartamento dele fosse suficiente para lhe esfriar o corpo.

Ele hesitou, reflectiu sobre as consequências de avançar ou recuar, e pôs-se a rir para o copo de uísque que tinha na mão, sentindo que a recusa dela era um convite a qualquer coisa, qualquer aproximação, qualquer risco, qualquer voo no abismo.

Enquanto ria, como se ela não estivesse ali mesmo a seu lado, Armando teve a nítida impressão de percorrer vertiginosamente a noite escura por dentro de um crocodilo com a boca aberta para as nuvens. E via-se às cavalitas de Artemísia, atravessando os tempos em que não soubera de si nem do mundo. Parecia que a conhecia desde sempre, desde os primórdios da vida na Terra. Só faltava convidá-la para dar a dentada na maçã! Tudo isto enquanto as luzes rodopiavam por entre as ondulações dos prédios que se amontoavam em cima uns dos outros até perder de vista.

Ela parecia surpreendida por vê-lo assim ausente e disse que também queria tomar qualquer coisa, mas ele não a ouviu, como se tivesse feito as malas para outro país, de súbito, embora continuasse ali presente, palpável, definido, na sombra dos movimentos breves que a noite desenhava.

- Podias dormir cá - sugeriu ele, de forma brusca, sabendo que ela não estaria à espera de semelhante proposta.

Mas, para sua surpresa, Artemísia não respondeu. E o silêncio cúmplice parece ter decidido tudo o que aconteceu dali em diante.

Artemísia preferiu não fugir ao momento que vivia. Se chegara até ali, havia de sobreviver ao resto. Vendo bem as coisas, Armando não tinha nada o aspecto de um psicopata ou de um violador. Caso contrário, já teria feito alguma coisa para a cortar aos pedaços, já a teria asfixiado com uma peça de roupa, já se teria munido de uma qualquer faca ou lâmina que faria deslizar sobre a pele arrepiada do pescoço. Era assim nos filmes, na realidade das noites em que não é possível fugir para onde quer que seja, só estar ali de frente para um rosto, para um texto, para uma luz.

- Dormes cá esta noite!, dormes cá esta noite! - pôs-se ele de súbito a gritar pela casa fora, marchando, sem se preocupar com o barulho - taratchim, taratchim - fazia ele com a boca, batendo palmas, rindo e cantando melodias desprovidas de nexo.

Entretanto, ela tinha coberto o rosto com as mãos, dando a ideia de que tinha acabado de consentir num crime, num disparate, numa asneira irreparável. E quando encontrou uma brecha para se fazer ouvir, exclamou:

- Mas eu não disse que concordava em dormir cá esta noite...

- Não concordaste, nem deixaste de concordar - replicou ele. - O teu silêncio foi revelador. Aliás, nem esperei pela tua resposta porque até defendes que as palavras são uma perda de tempo!

- Estás a aproveitar-te de uma ideia que referi há pouco e que não tem nada a ver com o que estamos a falar agora - respondeu ela, procurando transmitir um ar de firmeza.

- Só nos conhecemos há algumas horas e já queres negar o que disseste?! Deixa-te de esquemas e rodeios porque não tens outro remédio senão dormir cá em casa esta noite...

A expressão "não tens outro remédio" deixou-a ligeiramente apreensiva. O melhor seria nem tentar saber o que se esconderia por detrás de semelhante frase, fingindo que não percebia onde ele queria chegar. E o certo era que não tinha exactamente a certeza de coisa alguma.

- Como vês, estamos feitos um para o outro! - disse ele à queima-roupa. – Apesar desses sapatos...

Ela teve foi sacudida por um leve estremecimento, como se ele estivesse a ir longe demais nas suas convicções. Armando queria estar sempre um passo à frente da realidade em que assentava os pés. Era a sua forma de tentar controlar o rumo dos acontecimentos, condicionando-os com as suas palavras. Esta atitude incomodava-a, abalava-a, porque Artemísia sabia que ele podia interferir com a sua vida, pelo menos a um nível imediato. E isso tinha os seus perigos. Porém, nada havia até ao momento que fosse suficiente para a fazer voltar a casa. Porque ele tinha qualquer coisa que a desarmava, despia, desassossegava, deixava perplexa, inquietava e acalmava, ao mesmo tempo. O comportamento desconcertante de Armando, no fundo, ia urdindo uma teia pela qual ela se deixava dominar, conquistar, vencer, instante a instante, sem opor resistência, devorada pela situação, engolida pelo imprevisto.

- Vou abrir a cama, para ficarmos mais à vontade... - disse ele, enquanto fazia um gesto que a convidava a levantar-se por breves segundos.

E antes que Artemísia tivesse tempo de dizer alguma coisa, ele puxou com destreza as almofadas do sofá, deixando-se cair sobre o colchão que se abriu num golpe de mágica, ao mesmo tempo que a puxava pela cintura, fazendo-a deitar-se a seu lado.

Ela reagiu, prontamente, sentou-se no sofá agora estendido no chão e protegeu com os joelhos o rosto afogueado, não sabendo se havia de rir ou de chorar.

Entretanto, Armando descalçou-se e apagou o candeeiro, deixando a sala mergulhada na claridade azul da manhã. Depois, assentou a cabeça sobre os sapatos de Artemísia e pôs-se a olhar para o tecto, sem dizer nada.

Ela deu voltas à cabeça, mas não conseguiu articular uma resposta que a esclarecesse perante si mesma. A cama estava aberta para tudo o que viria a seguir. E Artemísia encontrava-se deitada sobre os seus lençóis amarrotados. Uma ovelha que aceita ser degolada sem motivo.

Embora Armando continuasse a olhar para o nada que pairava junto às nebulosas estreladas poucos metros acima das suas pestanas, era evidente que fazia contas à situação, através de cálculos sobre vantagens e prejuízos, recuos e avanços, proximidades e distâncias, uniões e separações. Procurava não perder o controlo dos acontecimentos.

De costas para Artemísia, com a cabeça reclinada sobre os seus sapatos (os sapatos que haviam chamado a sua atenção desde o primeiro momento em que conhecera Artemísia), ele tentava identificar a mulher do seu passado que ela lhe fazia lembrar. Alguém próximo, alguém de família, uma tia, uma prima, uma parente da mãe chegada do estrangeiro. Ou então Artemísia fazia-lhe lembrar alguma mulher que conhecera ocasionalmente na rua, na sala de espera do dentista, no consultório de um advogado. Mas também podia ser alguém que nunca encontrara e que, agora, simplesmente, Artemísia tinha a arte de lhe dar a conhecer, através da sua própria expressão, do seu olhar irrequieto de coruja que não descansa enquanto não desce às profundezas da noite.

De certa maneira, ela parecia à altura de lhe dar respostas decisivas sobre uma quantidade de coisas. Porque não era bonita nem feia, não era magra nem gorda, não era meiga nem agressiva, não era escura nem clara, não era brilhante nem tonta!

É certo que os seus sapatos tinham qualquer coisa que lhe faltava desvendar, mas dentro de pouco esclareceria todas as dúvidas. Mais tarde ou mais cedo, ela teria que descalçá-los e então ele poderia verificar uma quantidade de coisas. Aliás, só por delicadeza ainda não lhe dissera para os tirar.

No fundo, talvez o problema não estivesse nos sapatos de Artemísia, mas sim nos pés. Armando não se admiraria se ela não estivesse à vontade com qualquer coisa nos seus pés. Um dedo maior do que o normal, uma unha menos elegante, uma planta do pé mais achatada. Sabia-se lá. Há pessoas que não gostam do seu nariz, da sua boca, das suas mãos. Artemísia podia muito bem não gostar dos seus pés. E por isso os protegia dentro dos sapatos. Daqueles sapatos.







4




Armando tinha uma fixação por sapatos. Dizia mesmo ser capaz de conhecer as pessoas consoante a sua cor, forma, tamanho, altura do salto, brilho, material, biqueira (mais larga ou mais fina)... - os sapatos eram quase um documento de identificação, um passaporte, um carimbo através do qual construía a sua primeira ideia acerca de quem os usava, fosse mulher ou homem.

Em ocasiões anteriores, chegara mesmo a terminar algumas relações só porque não era capaz de gostar dos sapatos delas. E em outros casos, foi ao ponto de evitar conhecer melhor uma pessoa por achar que não valia a pena, tal a aparência dos seus sapatos. Se estivessem excessivamente cuidados, a situação podia tornar-se problemática. E se fosse o contrário, também...

Com os sapatos de Artemísia, a dificuldade era diferente. É que, olhando-os bem, nada diziam. Armando não percebia o que estaria por detrás da sua simplicidade. Se dificuldades económicas, se convicção, se temperamento, se opção. Eram demasiado impessoais. Pareciam mesmo ter sido dados por alguém.

Só que Artemísia não tinha o ar de quem fosse necessitada a esse nível. Sapatos castanhos, de pele vulgar, totalmente lisos, salto médio, nem largos nem finos à frente, eram para ele um autêntico quebra-cabeças. Como se ela não viesse de parte alguma, ou vivesse desprovida dos bens mais elementares, acabada de sair de um convento, sem possuir o que quer que fosse, nem o próprio corpo!

Armando sentiu que o corpo de Artemísia não era de Artemísia, mas sim de outra, indomável, fugidio, inalcançável. Por isso, também, a vulgaridade dos sapatos...

Ele estava de olho no tecto, com a cabeça sobre os sapatos dela, para não os ver, tentando encarar a situação de outro ângulo.

A personalidade de Artemísia estava ali, a seu lado na cama, ao passo que o corpo parecia estar em toda a parte. Um corpo de todos, para muitos, exclusivo, dedicado, pensativo, impossível, concreto, exacto e obscuro num tempo sem compreensão. Um corpo que não se conhece é sempre de todos...

Artemísia podia ter vindo de muitos países ao mesmo tempo, podia ter navegado por muitos mares, podia ter percorrido muitos caminhos e, no fim de tudo, podia ter interrompido o voo pousando na casa de Armando, na sua cama, nos seus lençóis, para se reencontrar, para se redefinir, para se recomeçar. E então, ela seria um corpo novo, cheio de outros num só.

Armando não conhecia bem o corpo nem o espírito de Artemísia. Por isso, só podia especular, pensar, tentar adivinhar... E, ao fazê-lo, sentia-se mais e mais atraído por ela, pela sua impenetrabilidade, pelo seu enigma.

Quase inconscientemente, ele apertou-lhe os tornozelos e ela respondeu trazendo as suas mãos ao encontro das dele, agarrando-lhe os pulsos de forma extremamente suave, como se os seus dedos fossem lâminas prontas a cortar-lhe as veias.

Armando deu uma volta sobre si mesmo, para se libertar e perguntou:

- Onde compraste os teus sapatos?

Artemísia não estava à espera da pergunta, mas replicou com inusitado sangue-frio:

- Sempre gostava de saber por que razão não hás-de deixar os meus sapatos em paz!

- Não consigo perceber-te através deles...

- Só me podes perceber através da alma, do coração, da sensibilidade, nunca através dos sapatos - argumentou ela.

- A melhor forma de conhecer uma pessoa é através de um aspecto inesperado, de uma característica imprevista, porque só assim podemos apanhá-la desprevenida e só apanhando-a desprevenida conseguiremos chegar a algum lado...

- Mas com os meus sapatos só eu posso chegar a algum lado! - disse ela com ar visivelmente divertido.

- Estás a querer brincar com uma coisa séria - respondeu ele, ligeiramente contrariado.

- A questão não está nos meus sapatos! Falas neles porque não és capaz de colocar os assuntos com frontalidade e coragem. Quando nos conhecemos, no cinema, fizeste logo um comentário despropositado...

- É que os teus sapatos parecem vazios, parecem de outra pessoa...

- Não precisas de tantos rodeios para me dizer que não devo estar de sapatos no teu sofá-cama!

- Até acho que ficas mais atraente com os sapatos nos pés. Não os tires. Nunca me aconteceu estar na cama com uma mulher de sapatos. Pensando bem, acho melhor assim. Inicialmente, cheguei a pensar que eles esconderiam alguma coisa, mas acho que não.

- Podes estar descansado porque não se trata de um estratagema para te fazer cair nas minhas garras...

Ela estendeu-se mais na cama, enquanto dobrava as pernas para trás, como se se preparasse para tirar os sapatos, mas Armando apressou-se a impedi-la, segurando-lhe ambos os pés com tanta convicção que parecia mesmo disposto a amarrá-los, só para os ter exactamente como os vira pela primeira vez.

O movimento dos corpos deslizou sobre o colchão e em poucos segundos ambos se encontravam um ao lado do outro, um com o outro, um sobre o outro, um contra o outro, um pelo outro..., sem palavras, só com sombras ondulando na luz delicada das paredes, suspiros fundos, murmúrios, sílabas apertadas entredentes! Sem terem tirado a roupa, estavam nus, com as dobras dos tecidos prolongando os músculos, as peles, os movimentos em que se anulavam, desafiando as inibições.

- Despe-te! - disse ele.

Mas ela não ouviu, agarrada que estava aos seus colarinhos pronta a esbofeteá-lo a qualquer instante.

- Despe-me!! – insistiu Armando, embora receasse ficar à mercê de uma qualquer fúria assassina. Por qualquer razão, Artemísia trazia-lhe à memória facas e golpadas imprevistas nas partes mais fundas e desprotegidas do corpo. Mas isso fazia com que ele a desejasse ainda mais completamente, o que o obrigava a arriscar cada vez mais.

- Despe-me da cabeça aos pés e desfaz-me em tiras - suplicou ele, desvairado, sem tino, pronto a dar a vida por um segundo de hesitação sobre o abismo.

Artemísia, porém, estava pouco interessada nos seus delírios. E puxava-o para o si com todas as forças, sacudia-o, dobrava-o sobre a cama desarrumada, sentava-se sobre ele e ameaçava rasgá-lo de alto a baixo, destruindo-lhe a roupa ou a pele, não fazia diferença, o importante era feri-lo de morte antes que ele o fizesse a ela.

Os corpos de Artemísia e de Armando ardiam na noite descontrolada. Ela soprava por entre os botões da camisa dele, soprava e voltava a soprar querendo encher-lhe a casa de labaredas e quanto mais ela soprava mais ele sentia cair aos pedaços o muro que tinha diante dos olhos.

E punha-se aos saltos na cama, aos guinchos e às gargalhadas, completamente transviado, convidando-a a agarrá-lo, a prendê-lo, a imobilizá-lo, a segui-lo de rastos pela casa fora.

Armando fugiu e ela foi atrás dele, agarrou-o, caíram os dois no meio do soalho, engalfinhando-se numa luta de cócegas, apalpões, escapadelas e trejeitos.

Mas ele voltou a libertar-se e precipitou-se para a cozinha, onde se deixou cair ao comprido sobre o chão, de braços abertos, ofegando até não poder mais, enquanto lhe pedia tréguas.

Ela avançou sobre ele, imobilizou-o com as mãos febris e arrancou-lhe dois botões da camisa com os dentes!

Armando ficou hirto, deitado, a olhar para ela, tentando compreender até onde poderia chegar, se pretendia dominá-lo, ou apenas desvendar outras dimensões da sua forma de ser.

- Sempre é uma maneira de te conhecer melhor - disse ela, de forma intempestiva. - Vou sugar-te até aos ossos.

- Projectando a nossa relação para o futuro, tenho a impressão de que poderás vir a matar-me! - replicou ele. – Receio qualquer coisa do género.

- É estranho que penses assim - respondeu Artemísia. Eu nunca seria capaz de te tirar alguma coisa, um disco, um papel, um talher, muito menos a vida!

Ela estava sentada em cima dele, ainda com as mãos prendendo-lhe os pulsos, com ar de quem se dispunha a arrancar-lhe o resto dos botões com os dentes aguçados e cortantes.

- Se eu alguma vez tivesse que te matar seria hoje e não daqui a uns anos – esclareceu ela. Mas já tenho outros planos para essa altura...

- Se calhar, vais ter que revê-los, porque de hoje em diante vai ser diferente.

- Existes agora, conheci-te hoje, estás na minha frente..., mas não sei se conseguirás sobreviver. Além disso, pode ser que o meu rumo não te interesse. Ponho sérias hipóteses de deixar Lisboa para experimentar outras saídas num país diferente.

Enquanto falava, Artemísia deixou-se descair sobre uma das pernas, aliviando o peso sobre o corpo de Armando e libertando-lhe os pulsos.

Logo que se sentiu menos condicionado, ele ergueu o tronco, empurrou-a para trás e inverteu a situação, imobilizando-a sobre os mosaicos duros do chão. O calor dela contrastava com o frio apertado contra as suas costas, o que o tornava cada vez mais desassossegado, irrequieto, tenso. À medida que se controlava, sentia os braços finos dela perdidos entre as suas mãos, cada vez mais livres, mais descomprometidos, mais ousados.

Artemísia estava agora completamente rendida sob a sua sombra, deitada no chão da cozinha como uma ave degolada, à beira de uma luz estridente e submissa, restando-lhe apenas a segurança dos sapatos, que continuava a não descalçar.

- Quem vai decidir se eu farei parte do teu futuro, ou não, somos nós os dois - disse ele, a dada altura, deixando claro que tinha uma posição a defender naquela noite.

- Quando fiz os meus planos para o futuro, não te conhecia, não sabia quem eras, não estava ao corrente da tua existência. Não me podes levar a mal por isso... E não sei se, agora, conseguirás entrar por alguma brecha, alguma nesga distraída, alguma janela entreaberta.

- A nesga foi esta noite...

- Esta noite ainda não foi nada de especial...

- Esta noite vejo-te estendida de braços abertos, à espera do momento em que nos conheceremos melhor um ao outro.

- Mas o conhecimento não tem um momento exacto ou um instante determinado. O conhecimento precisa de tempo, precisa de experiências em conjunto, precisa de reflexão, precisa de tanta coisa...

- Há formas instantâneas de conhecer que equivalem a muitos anos de convívio. Para que achas que serve a perspicácia? Tem a ver com o que aconteceu connosco esta noite. Alguma vez te sentiste tão à vontade num primeiro encontro?

- O que facilitou a nossa aproximação foi a maneira como me provocaste por causa dos sapatos. Mas esse teu jeito para quebrar formalismos não significa que tenhas mais facilidade em conhecer as pessoas. No fundo, provocas as mulheres só para encobrires a tua timidez!

Armando fixou-a nos olhos e respondeu sem pensar, para que ela não percebesse até que ponto o seu diagnóstico era correcto:

- Ser espontâneo e directo não tem nada a ver com provocar. Não gosto de artificialismos e rodeios. Mas não sei que mal há em ser tímido...

- Não há mal nenhum, escusas de acusar o toque...

Armando pôs-se a empurrá-la sobre o chão, de costas, fazendo-a arrastar-se e deslizar ao longo do soalho, com a ajuda dos pés e das ancas, enquanto ele a acompanhava, avançando de joelhos, controlando-a com o olhar para ela não desaparecer na curva da porta mais próxima, mas conseguindo estar sempre mais presente, mais próxima, mais palpável.

Quando chegaram junto do sofá-cama, desataram a arrancar as roupas um ao outro, enquanto se engalfinhavam, agarravam, colavam, prendiam, sugavam, esqueciam, tresloucavam, embraveciam, ao mesmo tempo que se entregavam, completamente esquecidos de cuidados e convenções.

Despidos, desfeitos entre os lençóis, diluídos na obscuridade do quarto, com todos os movimentos preenchidos e libertos, só os sapatos de Artemísia saltavam à vista, no remoinho de gestos e contradições que enchia a noite.

No fim das liberdades, na linha exacta em que as horas se desintegram em minutos, segundos e instantes cada vez mais ínfimos, Artemísia e Armando desapareceram, fazendo tudo voltar ao início, sem nunca acabar, com a respiração sempre suspensa, uma espécie de cântico que não passa dos primeiros acordes, um desacorrentamento, um deslize pelos abismos com as nuvens aos pés, um delírio de espuma com fios de suor rente às superfícies antes de tudo acontecer e mesmo depois era antes, sempre antes, cada vez mais antes, mais cedo, sempre mais perto do ponto em que tudo era concebido...







5




Quando acabaram de fazer sexo, Artemísia e Armando não sabiam se estavam vivos ou mortos. Encontravam-se estendidos ao lado um do outro, completamente nus sobre a cama desfeita, sem mexer um dedo, uma pálpebra, um músculo. Quase nem respiravam.

Por um lado, estavam vivos, porque tinham consciência do que se passava à sua volta, mas, por outro, pareciam mortos, porque não reagiam a nada.

No quarto, o silêncio fazia lembrar os cemitérios quando não há vento a embalar os ciprestes. Só a certa altura, e por uns breves instantes, se ouviu alguém arrastar um móvel no andar inferior. Aquele ligeiro ruído, quase irreal, mas concreto, era o que restara no edifício depois de quase todos os residentes terem ido de férias. Podia ser mesmo irreal. Ou um eco com dias de atraso...

Estava-se em Julho, mês das noites longas, quentes e sem nexo. Ninguém acudiria para salvar duas almas perdidas algures no sétimo andar de um prédio em Lisboa.

Artemísia pensou deslocar uma das mãos sobre o lençol, para ter a certeza de que estava mesmo ali, de que tinha os ossos no sítio, mas desistiu, pensando que talvez fosse melhor não despertar o corpo de Armando. Cada milésimo de segundo que passava era um prazer eterno.

Quando ambos deram por si, estavam lado a lado, como dois cadáveres - palpitantes de vida - ainda perplexos com o que lhes acontecera.

Não falavam. Tinham as gargantas secas de humidade, os olhos fechados (como se abertos na direcção de uma parede branca), as forças inutilizadas sobre o colchão.

Armando nem sabia em que direcção se encontravam as suas pernas e braços. Os membros tinham deixado de obedecer ao comando do cérebro.

Olhava para cima e tinha a impressão de ver Deus colado no tecto do quarto. Deus devia ser aquele reflexo imenso e suave sob o qual se abrigam os corpos depois do sexo. Deus era uma espécie de visão interior projectada para além do eco que fazem os pensamentos antes de alguém os ter ordenado. Vendo bem as coisas, Deus era palpável na sua brancura de cal, era alcançável nos seus contornos, era compreensível nos seus juízos primários. Deus era o espaço, o tempo e a ideia por dentro do qual o prazer era a soma de todas as sensações puras. Deus não tinha limites. E alimentava os sonhos de tanta gente desde o princípio de todas as coisas.

Por seu lado, Artemísia olhava e olhava, mas não via Deus, nem sombra de espíritos ou de asas voando sobre a paisagem de Lisboa. Nem fazia preces que a pudessem conduzir a uma dimensão superior.

O seu paraíso era o quarto onde jazia ao pé de Armando, era aquele vale de pó antigo numa indefinição de contornos que fazia com que ela se esquecesse de si mesma.

Para Artemísia, Deus equivalia ao passado. Não falar dele, nem reconhecê-lo, era tão importante como o prazer no mais alto grau de todos os músculos. Para Artemísia, Deus era a sua própria ausência, dúvida e vazio. Deus era a negação do que existia. Como tal, não continha dor, só prazer, mais e mais prazer, tanto quanto podia conter uma ideia absoluta.

Ela fazia contas às pulsações do ventre. Ficava para ali a segui-las por tempos sem fim. Continuava a sentir dentro de si um furacão que destrói tudo à passagem. Estava destelhada, desabrigada, desamparada, pela noite fora, sobre o cavalo do tempo na paisagem febril dos lençóis. O seu Deus era um animal sem regras disposto a todas as libertações.

Artemísia pressentia qualquer coisa, pressentia que a sua vida podia sofrer uma grande mudança. Esse pressentimento despertava-lhe medo, fazendo com que desejasse adiar o momento exacto em que teria que levantar-se da cama e voltar para casa.

O ideal seria esquecer o tempo de uma vez por todas. Já esquecera o passado. Faltava resolver o presente e o resto.

À sua direita, na cama, estava o homem que conhecera naquela noite. Embora pouco mais soubesse do que o seu nome, ele tornara-se parte dela, penetrara-a, atravessara-a, conquistara-a. Agora, já não via as coisas da mesma forma.

Artemísia estava como se tudo tivesse que recomeçar dentro dela. Desde a forma de pentear, até à posição dos dedos na maneira de segurar a chávena do café, ou mesmo a cor da sua pele - tudo estava em questão. O tamanho das pernas e das mãos, o volume dos braços, a largura da anca...

O corpo era o seu Deus, porque fora através do corpo que atingira o prazer máximo e o prazer máximo só podia ser comparado ao Deus que vence todos os medos.

Assim, ela não precisava de acreditar nem de deixar de acreditar num ente superior que explicava (ou não) o sentido da vida. Porque não se acredita em algo que nos pertence.

Artemísia tinha um Deus que era o seu corpo e nada mais. E o seu corpo, ou o seu Deus, era um vulcão a rebentar de temperaturas, de formas e conteúdos, de apetites.

Armando estava quase morto, mas debatia-se com a ideia de querer mais e mais, apesar de já lhe ter acontecido tudo. Por isso, enquanto desejava uma coisa, concluía também que não valia a pena desejar o impossível.

Voltar ao princípio seria inglório. Estava certo de que a experiência daquela noite não se repetiria. Nunca mais encontraria Artemísia em circunstâncias semelhantes, mesmo que a partir daquele momento passassem a viver juntos.

Se o fizesem, o dia a dia havia de tornar-se um aborrecimento, matando a sedução, o brilho dos corpos, a originalidade dos sentimentos... Por mais que se esforçassem, a vida a dois faria pouco sentido. Porque era um exagero ter dois seres humanos sempre em cima um do outro, sem nunca se encontrarem, sem nunca se perceberem, sem nunca se amarem.

Para Armando, só a liberdade afectiva consentia que duas pessoas pudessem entregar-se despidas de constrangimentos. Por isso, tinha chegado a um beco sem saída. Se voltasse a estar com Artemísia não seria capaz de repetir a experiência e se não voltasse a encontrar-se com ela também não seria capaz de repetir o prazer que dispensa convenções e que se desfaz nos limites da dor insuportável.

"Absoluto..., quem fez o absoluto?...", murmurava Armando para si mesmo, quase em delírio. "Não pode ser..., não tem lógica...". As palavras tropeçavam dentro dele, deixando-lhe a cabeça feita numa caldeira de vapores. "Mas o absoluto está aqui, ó absoluto, diz lá se não estás, diz lá quem te deu o nome, quem te encontrou perdido nas montanhas do gelo derretido, quem te pecou - ó absoluto - quem te deixou como um fio de sangue rasgando o azul da Primavera nos metais sonoros?"

Artemísia já não se recordava praticamente do que lhe acontecera até ao momento em que encontrara Armando. A tempestade do sexo tinha-a atirado para outra dimensão. Não conseguia juntar pormenores, hesitava sobre as primeiras palavras que pronunciara, depois vira-se dentro de um táxi a caminho do Areeiro, parecia-lhe que havia subido uns lanços de escada para tomar o elevador e pouco mais...

Nunca lhe acontecera uma sedução do género, irremediável, pronta, irracional, completa, mútua, vertiginosa, ao ponto de não ter consciência sobre como sairia dali, por um movimento de porta, sombra de janela, vão de claridade ou qualquer outro gesto de significado obscuro.

Tinha sido violada, de uma ponta à outra, sem remissão, mas isso não a impedia de se sentir em paz consigo mesma e com o homem que se encontrava estendido a seu lado na cama. Sentia-se feita em pedaços, desarticulada em relação a outros momentos da sua existência, representada em diversos lugares independentemente das horas, suspensa na ponte de um rio com os cabelos transformados em cinza voadora, esquecida numa linha de comboio ao ritmo das palavras distribuídas pelas janelas da cidade, atirada com pedras e poesia para o fundo de um mar que não tinha regresso.

"Afinal, ser violada tem o seu interesse", pensava ela. "É só entregar o corpo a um desconhecido. E se ele der cabo de mim, não é nada que eu não deseje...".

Armando já tinha conhecido outras mulheres antes de Artemísia. Mas eram fechadas, presas, inibidas, medrosas, fingidas. Tinham uma visão limitada do sexo. Algumas eram mecânicas, esquemáticas, funcionais, operárias numa linha de montagem. E outras não eram capazes de despertar a loucura que havia nelas.

Artemísia era de outro planeta. Parecia conhecê-lo ao mais ínfimo pormenor, na forma como tocava, contornava os músculos, a cor da pele, a luz que havia escondida na sua alma.

Os homens que Artemísia conhecera antes eram convencidos, arrogantes, egoístas, preguiçosos, exibicionistas, exigentes. Um deles até chegara a adormecer-lhe em cima enquanto copulavam, ressonando como um navio bronco amarrado ao cais. Os homens que conhecera falavam muito e diziam pouco. Exigiam, pediam, insistiam, como se ela tivesse a obrigação de os satisfazer sem mais nada. Armando não olhava a meios, não tinha princípio nem fim, não hesitava..., não precipitava.

Por qualquer razão, por uma sorte, talvez, Artemísia e Armando pareciam feitos um para o outro.

O maior prazer acontecera a seguir ao acto, quando os corpos se imobilizaram e praticamente deixaram de respirar, esquecendo-se de que estavam no mundo. Um prazer em tudo semelhante à morte, qualquer morte, porque depois dela só há sossego.

Artemísia e Armando eram dois náufragos que se recusavam a vir à tona de água:

- Diz alguma coisa... - murmurou ela, encostada a uma réstea de aragem que acabara de entrar por uma nesga de janela.

Mas Armando nem pestanejou. Parecia uma fera adormecida num vão entre as sombras do quarto.

Ela abriu os olhos e observou o espaço em volta sem mexer a cabeça, para não partir qualquer coisa que estivesse ali mesmo à beira, uma loiça fora do sítio, um vidro, um vaso...

Viu tudo ondulante, vago, distante e nebuloso.

- Estás morto? - perguntou receosa, embora soubesse que ele estava mais vivo do que nunca...

Armando reagiu, apertando-lhe levemente o pulso, num sinal remoto enviado de outra galáxia, sem se preocupar em saber se estava realmente morto ou vivo, em viagem de um cosmos para outro, ou se tinha chegado ao ponto onde só pode haver paz de consciência, independentemente das contradições em que se mergulha.

E Artemísia fechou os olhos, numa despedida, num desejo de lembranças sem fim, naquela data, naquele sentimento, naquela oportunidade, ao lado daquele homem. Era uma sensação redonda com ângulos por todos os lados e penugem de galos desfeitos na madrugada desprovida de escala e de censura.

Tudo o que lhe aconteceria nos próximos segundos e minutos poderia fazer parte dos primeiros sinais de alguma coisa que faltava concretizar. Por isso, tinha que concentrar toda a sua atenção no futuro, nos momentos a seguir, na incógnita, na expectativa...

E se Armando quisesse saber alguma coisa sobre o seu passado? E se lhe adivinhasse os medos no fundo da consciência? E se tivesse o condão de ler a sua alma sem que ela pudesse proteger-se?

Armando começava a despertar, procurando dar um sentido ao espaço em que mergulhara. A primeira ideia que lhe surgiu foi que havia de fingir-se distraído se Artemísia lhe perguntasse alguma coisa sobre os planos que tinha para o futuro. Seria importante não lhe dar demasiadas pistas. E, para já, não estava interessado em ceder um milímetro nos seus hábitos quotidianos. Travaria a eventual curiosidade dela, orientando a conversa para fora dos seus redutos, devolvendo-a ao passado, remetendo-a para o tempo que revela a profundidade dos sentimentos imprevistos. Era uma estratégia quase sempre infalível que ele usava com frequência.

Tinha que acautelar-se, agora, porque Artemísia podia estar disposta a tomar conta dele e de todos os pormenores que o seu corpo trouxera à superfície. Havia que ser sincero, mas esquivando-se aos golpes e desfechando outros certeiros no campo que desejava atingir. A não ser que ela descalçasse os sapatos e algum dado novo se lhe revelasse. Mas, no fundo, preferia as coisas como estavam, até àquele momento.

À sua frente, Armando via uma colcha negra sobre as decisões, um mistério impenetrável sobre a compreensão, uma distância inibidora sobre os gestos. Mas não lhe desagradava ficar ali estendido para sempre, derretendo no calor das horas, rente à ondulação dos caules verdes que se confundem com o mar cinzento. Era capaz de explicar tudo com base no que já sabia sem ter que aprender mais nada e sem ter que separar-se da mulher com quem se encontrara naquela noite.

Artemísia pensou que não havia grande diferença entre o homem que tinha a seu lado e a imagem do Diabo que as histórias bíblicas davam a conhecer. Para completar rigorosamente a figura de Satanás, Armando só precisava de uns chifres e de uma cauda chispando fogo pela casa fora. Era uma espécie de um segundo Deus, opondo uma força a outra força, com o objectivo de conseguir o equilíbrio das naturezas. O sexo era invencível, o amor, Deus e o Diabo.

Para Artemísia, o Diabo, o sexo e Deus eram a liberdade, a grande liberdade, onde é possível afirmar tudo, onde não há lugar a dúvidas, nem certezas, nem promessas, nem congeminações - só actos. Se o vazio de Deus era uma forma de prazer, a plenitude do Diabo era outra (uma realização sem paralelo). Pensou que devia tomar nota das ideias que lhe surgiam naquele momento, para depois as analisar friamente, mas percebeu que o esforço seria em vão porque mais tarde não seria capaz de refazer o contexto em que as mesmas tinham sido elaboradas, o que lhes retirava todo o interesse.

Armando via Artemísia como a tentação incontrolável. Mesmo sem dar bem acordo de si, só conseguia repousar imaginando-a despida a seu lado, sempre calçada, pronta a fazer sexo, sempre sexo e mais sexo.

Deus e o Diabo eram do mesmo sexo. Artemísia é que não. Por isso, era-lhe difícil compreender a verdadeira natureza dos mitos, a verdadeira natureza do homem pelo qual se deixara violar.

O prazer era a confusão, a indefinição, a vastidão, a solidão, a rarefacção, a lassidão. O prazer era Deus e o Diabo ao mesmo tempo, era Artemísia e Armando afundados nas alturas de um sétimo piso, em Lisboa, sem fazer contas a nada, sem explicar o que se passava, sem pensar nas consequências do que faziam.

O mundo era um triângulo redondo com vinte olhos na cabeça, um cavalo escrevendo na planície com rosas, um vazio de luzes sobre o precipício, um corpo deitado junto a outro corpo, um silêncio de contenções por dentro do néon invisível.

Artemísia e Armando já não recordavam o sítio onde tinham deixado os sexos. E enquanto procuravam lembrar-se, esboçaram os primeiros movimentos, para vir à tona da realidade, pondo-se a tactear os lençóis em redor, os músculos, as peles, os cheiros, as divagações, as obscuridades.

Olhando para o relógio caído no soalho junto a uma dobra de lençol, Armando reparou que eram três e vinte cinco da madrugada. Só que podiam ter passado dias, ou anos, desde o primeiro momento em que a alma dele se perdera dentro da alma dela, para ficarem ambos reduzidos ao monte de carne e despojos em que se resumiam agora.







6




Ao fim de uma quantidade de tempo em que nada parecia ter acontecido, e em que tudo se tinha realizado como num milagre de sensações libertas, Artemísia levantou-se e foi para a cozinha mexer em coisas, nos tons das superfícies perpendicularmente lisas até à horizontalidade, nos armários, nos espaços que havia por detrás de cada movimento, nos pratos, no frigorífico que tremelicava, parecendo que a casa era dela, e que a noite não tinha descanso ou que o seu corpo de repente tinha necessidade de refazer toda a agitação que se esvaíra nas horas anteriores.

Ela olhava para os utensílios, para os frascos, para os tachos, e punha-se a tentar compreendê-los, o que a fazia mudar as coisas de um sítio para outro (às vezes, apenas uns centímetros, ou uns breves milímetros...), como se cada objecto precisasse de estar às suas ordens e pudesse ser reconcebido naquele preciso instante de conjecturas inexplicáveis.

Tudo lhe parecia novo e brilhante. Os azulejos, as máquinas, a chaminé, as cadeiras em volta da pequena mesa à espera que a madrugada clareasse, o chão, a caixa de fósforos, os panos, as toalhas, os detergentes, a inclinação dos móveis rastejantes.

A certa altura, Artemísia abriu a porta do frigorífico e não foi capaz de perceber a que fim se destinavam os artigos que tinha diante dos olhos. Fechou a porta e logo a seguir voltou a escancará-la, deixando a mão suspensa no puxador. Olhava e pensava em círculos que a faziam recuar para espaços negros sem regresso, em espirais que a levavam a rodopiar dentro de si, em linhas rectas que a deixavam desvairada sobre as arestas de cada segundo que passava. Artemísia era o espaço dos olhos à sua frente na luz branca que a transfigurava, vista de baixo para cima, descendo das nuvens sobre a terra iluminada.

Depois, ela ergueu a voz através da distância dos quartos e perguntou a Armando o que lhe apetecia para o pequeno-almoço!

As suas palavras avançaram aos solavancos pela casa e foram estatelar-se junto à cabeça dele, que não teve forças para responder. Mas o certo é que lhe apetecia comer a casa toda, o tempo todo, as lembranças todas, os desejos todos que ainda havia por descobrir na aventura dos gestos. Apetecia-lhe comer as paredes, os móveis, os cheiros, as roupas! Apetecia-lhe comer o vento, o calor, o prazer, o sexo sem definição que havia em todas as coisas que o rodeavam naquele momento. Apetecia-lhe comer as ruas, os edifícios, os parques de estacionamento, as pontes sobre os rios, os governos, as instituições mais indecifráveis, para que aquela noite fosse mais completa do que nunca. E não tivesse fim. Apetecia-lhe comer algo imenso, impossível de concretizar, a tentação insuperável da plenitude. Comer as ondas e as tempestades, comer a ideia, as ideias, comer...

Na cozinha, Artemísia deixara aberta a porta do frigorífico e parecia louca, fazendo um barulho ensurdecedor com os pratos e com tudo o que apanhava à mão. Abria torneiras, varria o chão, punha roupa na máquina de lavar, acendia o lume, ligava o esquentador, inspeccionava o microondas, tudo ao mesmo tempo, tudo com uma energia indomável, e a seguir a cada ruído vinha sempre outro maior que se somava ao anterior e assim a casa ia-se enchendo de uma vida que não se sabia onde começava nem acabava.

Ele perdido no caos dos apetites e ela desenfreada nos ângulos abertos do espaço por dentro dos quais se fabricam possibilidades inverosímeis.

A dada altura, Armando não suportou continuar a ser agredido por tanto barulho e gritou na direcção da cozinha:

- Que raio estás a fazer?

Mas ela não o ouviu. Por amor, por repentino amor, dedicava-se toda ao arranjo dos objectos entre os quais Armando passava os seus dias.

Artemísia continuou a fazer ruídos de toda a espécie, ali mesmo, indiferente às horas e aos preconceitos, indiferente às tensões.

- Deixa-te dessas coisas! - voltou a gritar ele. - Vem para a cama.

Só que ela se sentia tão feliz que era como se estivesse mesmo na cama, aninhada entre os seus braços..., entre os braços de uma cafeteira, de um tacho ou de um armário. Os ruídos que fazia eram uma música aterradora que vinha do passado e que ela não queria recordar, porque levavam a noite a confundir-se com a poeira do dia, enquanto as máquinas avançavam ao mesmo tempo que as balas na verdura intragável.

Artemísia punha as mãos na cabeça, encostava-se à superfície fria da parede e dizia para si mesma, de forma visivelmente aflita:

- Vão-se embora, vão-se embora, que eu não digo nada, não digo nada, prometo não abrir a boca...

A seguir, punha-se à espera a ver se a tinham deixado em paz. Mas o barulho dos disparos longínquos voltava a inundá-la numa ameaça cujos contornos não era capaz de definir.

Depois, ela procurava acalmar-se, dizendo para si mesma que aquilo não era nada, que era impressão sua, que era simplesmente medo, que se veria livre dos ruídos se conseguisse entreter-se com outra coisa. E a verdade é que tudo naquele momento era distante, nitidamente distante, ao ponto de poder ser escalpelizado, desmontado peça a peça, analisado sob a lupa da vontade. E por ser distante deixava-a ansiosa, arreliada, inquieta. Porque os canos das armas ficavam apontados aos seus olhos como caules de flores decepadas por onde só faltava correr o sangue da rebeldia esmagada sob a insegurança do poder.

E, então, Artemísia punha-se de novo a mexer em tudo o que lhe aparecia pela frente, para não ver, para não ouvir, para não recordar! O mais fácil seria procurar protecção junto de Armando, mas não queria que ele se apercebesse da sua aflição logo no primeiro dia em que se haviam conhecido. Podia ficar com uma ideia errada acerca dela. Um dia, talvez, lhe contasse o que sentia, o que ouvia, o que temia.

Alheio ao que se passava na cozinha, Armando avançou para a casa de banho, desviou os olhos quando passou diante da porta da cozinha, abriu a porta, pensou acender a luz, mas depois de tactear duas vezes com a ponta dos dedos sobre a parede desistiu, espreguiçou-se, sacudiu a cabeça.

Abriu o tampo da retrete, sentou-se e ficou para ali sem fazer nada, só deixando esvoaçar os pensamentos esvaziados até desaparecerem na bola escura que se tinha abatido sobre a sua cabeça.

Artemísia estava dentro dele e ele dentro de Artemísia, por isso não precisava de se preocupar com nada do que acontecera naquela noite. Aquela noite era sempre, era todas as noites, todos os dias, todas as horas, e Artemísia fazia parte desse mundo em que de repente ambos haviam entrado sem se darem conta.

O barulho que fazia na cozinha era apenas a excepção que confirmava a regra. Artemísia devia estar com olhos de animal vadio, devorando os movimentos em redor, sem pedir explicações nem querer perceber as causas profundas dos factos. A sua postura era a da sobrevivência, conforme se notava pelo estilo dos sapatos. Se tivesse Lisboa à disposição, ela tomaria conta da cidade num canto de quarto onde se morre de olhos abertos para a luz.

Armando levantou-se da retrete e debruçou-se sobre o lavatório, pondo-se a lavar os dentes, sempre com a luz apagada, para não ferir os olhos.

Terminada a tarefa, acendeu a luz, olhou para o espelho e viu o seu rosto iluminado pelo clarão da pele. Coçou um ombro, rodou sobre si mesmo e notou que tinha qualquer coisa nas costas. Por pouco não desviou a atenção para outro assunto. Mas, num último instante, decidiu verificar. Sentiu que havia mesmo qualquer coisa...

Não demorou a compreender: tinha as costas arranhadas, até ao sangue, de alto a baixo, cheias de feridas abertas por unhas, ou por pontas de chicote com lâminas afiadas que tivessem deslizado cortantes sobre a sua alma desprotegida.

De um instante para o outro, ficou sem saber o que pensar. Pôs a hipótese de ter visto mal, de ter sido impressão dele, de se ter deixado iludir por um reflexo mais afoito da luz que enchia a casa de banho.

Voltou a fixar o espelho, torcendo os rins com determinação - não dava para enganar - as marcas de sangue tinham-lhe cortado a pele nas mais variadas direcções das costas com rios vermelhos desenhados no seu corpo.

Estranhamente, não sentia qualquer dor, o que o deixava confuso quanto à ocasião em que os arranhões teriam sido feitos e quanto à profundidade dos instrumentos pontiagudos que os haviam materializado.

Mas como poderia alguém tê-lo ferido daquela maneira sem que ele se desse conta? Seria possível ter sido vítima de algum produto anestésico enquanto fazia sexo? Teria sido confundido com outro? Artemísia teria perdido o equilíbrio?

As ideias e medos vinham-lhe à cabeça descoordenadamente. Nos últimos dias, não estivera despido junto de ninguém. Por isso, Artemísia era a única pessoa que podia ser responsável por semelhante façanha. Ele não a conhecia de parte alguma. Não sabia com quem estava metido.

Se calhar, não era por acaso que ela fazia todo aquele barulho na cozinha com pratos e talheres. Se calhar, o objectivo dela era assustá-lo, desestabilizá-lo, desnorteá-lo, para depois o assassinar, fria e metodicamente, algures, na parte mais recôndita da sua própria casa, abandonando-o a seguir por tempo indeterminado, por tanto tempo quanto fosse necessário para o descobrirem depois repleto de bichezas imundas, lagartas, percevejos, piolhos e toda a espécie de roedores que devoram a alma dos mortos.

Mas Artemísia também podia estar envolvida com Arnaldo num qualquer esquema que ele desconhecesse. Porventura, teriam precisado do seu apartamento para tramar alguém, um negócio ou brincadeira de mau gosto que os tivesse obrigado a usá-lo para fins de sexuais, a fim de que Armando não desconfiasse de nada. Neste caso, era possível que Arnaldo tivesse sido contactado por Artemísia, secretamente, e se preparasse para aparecer a qualquer instante, batendo à porta de surpresa e exigindo entrar para partilhar a cama com eles! O facto de ela nunca descalçar os sapatos poderia ter a ver com o facto. Nos sapatos dela poderia estar escondida uma microcâmara, qualquer tramóia para o apanhar.

Tudo passava pela cabeça de Armando. Tudo e mais alguma coisa. O mais certo, porém, era Artemísia ter perdido o controlo e ter desatado a arranhá-lo daquela forma, sem olhar a meios, sem pensar na lógica da excitação, sem ter em conta o imprevisto e a novidade que constituía aquele encontro.

Por outro lado, podia tê-lo feito intencionalmente, para evitar que ele pudesse estar na intimidade com outra mulher durante os próximos tempos. E por cada unha aguçada que lhe cravou na pele, ela deve ter pensado que o tinha mais preso, só para ela, sem hipóteses, sem alternativas.

Era demais. Armando sentia-se perplexo. Já estivera com outras mulheres na cama, mas nenhuma jamais se atrevera a marcá-lo daquela forma. Artemísia deixava claro que seria ela a definir as regras do jogo. Arranhando-o de alto a baixo, como um Cristo chicoteado a caminho da cruz!

Armando saiu da casa de banho disposto a enfrentar Artemísia. Ao vê-lo, ela deu uma risada enorme, como se a observação do sangue e das feridas a divertisse profundamente.

- Dói-te, querido? - perguntou, dificilmente contendo as gargalhadas. - A “mamã” vai tratar das tuas feridas!

E enquanto assim falava, aproximou-se dele, pé ante pé, com cara de quem estava disposta a retalhá-lo em postas.

- Não estou a perceber a tua ideia - protestou ele. - Escusavas de me ter arranhado desta maneira!

Ela respondeu logo que não o tinha feito com intenção. Se assim tinha acontecido fora porque não havia sido capaz de dominar a atracção que ele provocara nela. De qualquer modo, os arranhões seriam a sua marca no corpo de Armando, argumentava, entre novos sorrisos, agora mais abertos e despojados.

- Não me digas que te deixei em maus lençóis perante alguma namorada... - disse ela, estudando-o e só então pensando que nem se preocupara em saber se ele tinha algum compromisso com outra pessoa.

- O problema não é esse - respondeu ele. - O que eu gostava era de compreender o significado do que fizeste. Podes ter um instinto animal que se torna incontrolável nos momentos de maior prazer...

- Não foi por mal - disse ela. - De qualquer maneira, não me apercebi do que estava a acontecer porque nunca te queixaste.

- Não me queixei porque não senti nada! - replicou Armando, enquanto pensava de si para si que as unhas de Artemísia podiam ter contribuído, afinal, para o prazer inigualável que tivera naquela noite. Uma sensação de ser trincado, mastigado, devorado, aos poucos; de ser apertado, sugado, apanhado, abalado, esventrado.

Ela conquistara-o com os sapatos, com as mãos, com as pontas dos dedos, com as unhas, à semelhança de garras de guindastes levados por águias que o tivessem elevado nas alturas até à vertigem da descoberta que todos ambicionam e perseguem.

- Agora, tenho a certeza de que nunca mais me esquecerás - acrescentou Artemísia. - O nosso encontro não podia ser igual a tantos outros que acontecem todas as noites, em Lisboa e por esse mundo fora. Não sou uma mulher que encontraste por acaso...

Armando concordou que as unhas dela tinham feito a diferença. E ficou a pensar no que Artemísia dissera: "Não sou uma mulher que encontraste por acaso...".

Como as costas não lhe doíam, não chegava a estar preocupado com o sucedido. Além do mais, nem tinha os arranhões diante dos olhos para se interrogar, para se inquietar...

Vendo bem, Artemísia tivera a arte de o seduzir, de o envolver, de o vergar. E, provavelmente, os seus receios não faziam sentido. Porque se ela fosse uma assassina, ou uma espia, não estaria a rir com os olhos brilhantes, ali mesmo, à sua frente, com um rosto de ave acabada de levantar voo.

- Queres que te ajude a arranjar a cozinha? - perguntou ele, ao ver a confusão em que se encontrava tudo em redor.

Mas ela disse que não e mandou-o de volta para a cama. Ela preparar-lhe-ia o pequeno-almoço, uma refeição como nunca tomara, às tantas da manhã.

- Verás que nunca mais pensas nos arranhões - disse, em jeito de provocação.

Ao contrário do que seria habitual numa situação do género, Armando obedeceu-lhe, retirando-se e indo recostar-se na cama, enquanto pensava na capacidade que ela ainda teria (ou não) para o surpreender.

Artemísia olhou à sua volta na cozinha e pensou na forma mais rápida e eficaz de reorganizar todos os tachos, cafeteiras, pratos e talheres que a sua excitação tinha deixado à mostra sobre os móveis, a mesa, o frigorífico, as cadeiras.

Encontraria solução para o pequeno-almoço. Recordava-se de ter visto morangos no frigorífico. Não seria má ideia. A coroar uma noite daquelas, nada melhor do que uma taça de morangos. Vermelhos e redondos no auge da euforia, a seguir à manteiga, ao pão, ao café fumegante.

Os primeiros raios entravam pela janela da cozinha, deixando o corpo de Artemísia coberto por uma ligeira névoa luminosa. Nua, sob a claridade difusa, ela movimentava-se, nervosamente, por entre o espaço disponível, rente às sombras dos seus próprios gestos, ao ritmo dos objectos impacientes por estarem fora dos seus lugares, sobre os sapatos indecifráveis que a acompanhavam para todo o lado.







7




- É estranho não sabermos nada um do outro - disse Armando, quando estavam os dois sentados no colchão a comer pão com morangos.

- Ainda não tivemos tempo para isso - comentou ela.

- Já estamos juntos há umas horas e não disseste nada sobre a tua vida.

- Até parece que já te deste a conhecer da cabeça aos pés...

- Quer queiras, quer não, estás na minha casa, o que é sempre uma maneira de saberes alguma coisa de mim. No espaço que habitamos, estão os nossos gostos, as nossas tendências, as nossas preocupações..., e tu passaste a ter acesso a tudo isto a partir do momento em que entraste aqui.

- Olha que logo depois de sairmos do cinema, eu queria ir para a minha casa...

- Mas acabaste por vir comigo. Não me admiraria nada que o tivesses feito com alguma intenção, apesar de teres encenado o contrário...

Artemísia ficou tensa. De olhos arregalados, não queria acreditar no que ouvia. Como seria possível ele falar daquela forma depois de tudo o que acontecera?...

- É por isso que não gosto de falar muito. Prefiro estar calada do que dizer asneiras! - desabafou.

- Falar é uma forma de existirmos, de nos revelarmos, de evoluirmos. Podes achar que não dizes asneiras, mas também vives sufocada sob tensões.

Ela exigiu que ele fundamentasse a sua afirmação, perguntando que sabia ele sobre ela para fazer uma tal afirmação...

- Deves ser daqueles que insinuam coisas porque não têm coragem de dizer o que pensam - afirmou Artemísia, enquanto ele a olhava vergada sobre os lençóis com a mesma expressão com que observara o seu corpo pela primeira vez. - Podes dizer o que quiseres, podes saltar e pintar o que entenderes que eu não conto nada!

E pouco depois de um compasso de espera, Artemísia defendeu que a melhor forma de alguém se dar a conhecer era entregando-se de corpo e alma!

Armando ripostou, alegando que ela tinha dado o corpo, realmente, a alma é que não:

- A alma está nas palavras que tanto odeias - disse ele. Ou julgas que a alma é uma nuvem ou uma claridade sem contorno em que te escondes do mundo?

- Quem te disse que eu me escondo do mundo?!

- É o que parece.

- Não achas que já insinuaste demasiadas tolices a meu respeito?

- Não te enerves - replicou ele. - Tens a sensibilidade à flor da pele, tens o ar de quem foge de alguma coisa invisível, tens cinza a arder nos olhos e desconfias de tudo que se possa dizer a teu respeito...

- Se me deixares respirar, talvez eu consiga mostrar-te que não sou assim tão nervosa e inquieta... Quanto à alma e às palavras, sabes muito bem que há pensamentos, ideias e desejos que não se manifestam através de palavras.

- Isso de pouco ou nada vale, se não for transmitido aos outros. As palavras são o único caminho através do qual te podes dar a conhecer. Não faz sentido que reduzas tudo ao sexo. Podes dizer que não concordas, mas o certo é que, na prática, é isso que acontece. No fundo, és só corpo, fundamentalmente corpo...

Ela altercou que ele via sexo em toda a parte e que daí a pouco diria que ela estivera na cozinha a fornicar com as louças e os talheres! Acrescentou que ele devia considerar-se feliz e realizado por ela ser assim. Depois, acentuou que o seu corpo era imaginativo bastante para chegar aos terrenos da alma. Que esta não tinha limites e que havia muitas maneiras de a alcançar. - A alma é o gesto que se torna reflexo da ideia...

Armando retorquiu que, por aquele caminho, ela estava em vias de construir uma nova poética filosófica, mas nem assim Artemísia se atemorizou e insistiu que já tinha falado bastante de si, das suas preocupações e da sua forma de estar na vida.

Ele procurou pôr alguma água na fervura, mas disse que ela fora demasiado abstracta e que nem tudo batia certo na sua história. E talvez fosse essa desfocagem que fazia com que ela fosse tão criativa na linguagem do corpo.

- Estás a reduzir-me a um objecto - disse ela, visivelmente arreliada.

Mas Armando achava que não, pelo contrário, ele é que estaria a ser objecto nas mãos dela, uma vez que não tinha acesso à realidade da sua vida, aos seus problemas, às suas desilusões, aos seus medos, contentando-se ela em possuir o seu corpo:

- Não sou um boneco de carne! - vociferou ele, a certa altura, pretendendo deixar definitivamente claro que tinha uma visão da vida que ia bastante mais longe do que a simples experiência de uma noite, por mais intensa, estranha e inexplicável que fosse...

Artemísia tinha deixado escorregar a cabeça sobre os joelhos e parecia não ter mais fôlego para o acompanhar...

- É melhor ficarmos por aqui - exclamou ela, sem conseguir disfarçar a irritação. - Não podes obrigar-me a falar do que não quero.

- Mas eu não te obrigo a coisa nenhuma - respondeu ele. - Tu é que sentes como se eu te obrigasse. Por isso te fechas sobre ti mesma e te oprimes dessa maneira.

Artemísia deu um salto na cama e pediu que Armando não insistisse naquele tipo de argumentação. E logo a seguir:

- Já agora, quando decides dizer alguma coisa acerca de ti?

- Lá estás tu outra vez... - respondeu ele, enquanto se engasgava com um morango. - Mas não é por isso que vou deixar de te responder. O meu passado é hoje, é agora, é estar aqui contigo, sentado no tempo de um comboio que não chegou a sair da estação, embora nunca tenha interrompido a viagem. Parece um paradoxo, mas é a minha forma de ver a vida.

- Fiquei a saber o mesmo que antes... - disse ela.

- Mas eu sou apenas isto, exactamente - insistiu Armando. - Sou isto que vês e tudo o que me antecedeu. Sou o somatório de todo um vivido até aos dias de hoje. Como queres que te ponha tanta coisa em palavras? É impossível. Se quiseres perceber, terás que me acompanhar na viagem interminável que nunca chega a sair da estação.

- A tua teoria procura apenas impedir que eu te conheça. Falas em viagens para te esquivares. E dizes para eu te acompanhar quando sabes que não o posso fazer porque não tenho dados nem pontos de referência sobre a tua pessoa. Ao menos assume que não queres dar-te a conhecer...

Armando sugeriu que fossem por partes. Primeiro ela, depois ele... Caso contrário nunca mais se entenderiam.

- Mas que queres que te diga sobre mim ? - perguntou Artemísia. - Queres que te conte tudo o que fiz até hoje? Queres que te conte todas as refeições que tomei e todas as lojas em que entrei? Queres que te conte todos os passos que dei em Lisboa, todos os namorados que tive, todas as esperanças que perdi? Queres que te conte todos os livros que li, toda a música que ouvi, todo o cinema que vi? Queres que te conte todos os meus traumas e todas as minhas esperanças? Queres que te revele o medonho segredo dos meus sapatos? Não achas que é preciso pôr limites nas coisas? Não te parece que esta noite já vivemos bastante, já gozámos bastante, já nos aproximámos bastante?

- Não contes nada - replicou ele. - Não te atormentes sem razão. De uma maneira ou de outra, estás sempre a comunicar. Ou através do corpo, ou através das palavras. Já percebi que não te sentes à vontade para falar. Tens a postura de quem cometeu um crime cuja lembrança não se atreve a enfrentar. Se é assim, fiquemos pelo relacionamento físico, fiquemos pelo sexo... Não quero entrar em zonas proibidas da tua vida, a não ser que desejes a minha companhia sempre que tenhas necessidade de lá regressar...

Artemísia estava visivelmente constrangida com os argumentos de Armando. Nunca pensara que um homem com o qual tivera tanto prazer pudesse tornar-se tão mesquinho de um momento para o outro. Antes estar com um psicopata violador! E, pela primeira vez naquela noite, arrependeu-se de ter entrado no táxi que a trouxera até ali. Como poderia continuar a relacionar-se com um indivíduo que não a deixava respirar, bombardeando-a com perguntas e raciocínios despropositados de toda a espécie? Já não lhe apetecia comer morangos. Armando que os comesse todos.

Por seu turno, ele parecia ter ficado subitamente alheio à conversa e ao pequeno-almoço, tendo-se estirado sobre o colchão, de repente absorto, distante, mudo, no fundo de uma lagoa à sombra do Verão.

Instalou-se a divisão entre ambos. Nenhumas palavras pareciam capazes de os trazer de volta ao espírito de comunhão vivido até há poucos momentos atrás.

Artemísia pôs-se a esmagar morangos com os dedos dentro do prato que tinha à sua frente, com uma fúria descomunal nas unhas, nas mãos, nos pulsos, uma fúria que lhe vinha de todo o corpo e que só poderia encontrar realização no sumo de morango que lhe avermelhava a pele dos movimentos.

Quando já não lhe restavam morangos para esmagar, quando já só tinha sumo no prato, lavou as mãos no próprio sumo e pôs-se a pintar o corpo de Armando, massajando-o, avermelhando-o, no tórax, no pescoço, no ventre, nas pernas..., sempre sem palavras, em movimentos ritmados e lentos.

- Podes experimentar o que quiseres que as tuas artimanhas não me convencem! - disse Armando, sem mais nem menos, enquanto ela se encontrava distraída a esfregá-lo.

As suas palavras paralisaram-na. Ficou de mãos suspensas no ar a olhá-lo, sendo evidente que não conseguia soltar uma resposta.

- Continua o que estavas a fazer - sentenciou Armando, de forma seca e implacável. - Posso muito bem falar e tu massajar. Cada um faz o que melhor sabe. Não desperdices o teu talento. Vai, mexe-te, ao menos acaba o que começaste, se é que isso tem algum sentido.

Artemísia obedeceu-lhe e continuou a massajá-lo com sumo de morango pelo corpo, desde o rosto e os ombros até aos dedos dos pés, enquanto ele não desistia de falar, esgrimindo ideias consigo próprio, brandindo raciocínios, propondo soluções, hipóteses, esquemas...

Entretanto, ela parecia não ouvi-lo. Besuntava-o com as mãos e mantinha-se calada, estranhamente submissa.

Por seu lado, ele endurecia o discurso e ordenava-lhe que fosse mais lesta nos movimentos de mãos:

- Já agora, podes aperfeiçoar aquilo em que és mais competente...

Mas como Artemísia não lhe respondia, ele voltou ao seu terreno favorito:

- Se reparares bem, nem precisas de falar para eu te conhecer. Porque a recusa das palavras já diz muito sobre a personalidade de cada um. Quanto mais calada estiveres, mais nítida será a ideia que tenho de ti. O problema é o recalcamento que isso significa. A questão não está em eu querer saber alguma coisa, mas em tu não quereres dar-te a conhecer. Aliás, se não queres abordar o passado, alguma razão haverá para isso...

- Mas quem falou do passado?... - retorquiu Artemísia em voz hesitante e baixa.

- Porquê? Não se pode falar do passado? Quer queiras, quer não, és apenas passado. Mais nada. O certo é que está na altura de dizeres alguma coisa sobre ti e até agora pouco ou nada adiantaste.

Em resposta à sua afirmação, ela limitou-se a aumentar a pressão das mãos sobre o ventre dele, todo avermelhado de morango desfeito, fazendo lembrar um corpo descascado, em carne viva, dorido, acabado de retirar do fundo de uma terra molhada.

Quanto mais as mãos dela deslizavam sobre a sua pele, mais vontade ele sentia de tentar vasculhar a vida dela. Porque se Artemísia se revelava assim repentinamente submissa, algum motivo haveria no seu passado que o explicasse. A sua grande batalha estava na explicação. Ele só queria perceber. Só queria descer um pouco mais às raízes. Não admitia que a manhã chegasse e ela fosse praticamente a mesma mulher que entrara em sua casa horas antes. Até porque só consentiria em continuar a encontrar-se com ela se tivesse uma ideia sobre os labirintos em que se movimentava.

E a visão de Arnaldo voltou a surgir na sua mente, como se houvesse qualquer coisa de menos claro no encontro fortuito que os três haviam tido no cinema. Por mais esforço que fizesse, ele não conseguia deixar de ver sexo no rosto de Arnaldo. Não ao nível do desejo, mas ao nível da realização. O rosto alongado e másculo não podia significar outra coisa. Era impossível Artemísia não ter ido para a cama com ele. A rapidez com que Arnaldo tinha desaparecido de cena era sintomática. A sua falta de à vontade fora mais do que óbvia.

- Achas que Arnaldo se importaria se soubesse que tínhamos feito sexo? - perguntou ele com aparente desinteresse.

Mas Artemísia não lhe satisfez a curiosidade. Deitou-se a seu lado na cama, com os olhos fixos nos sapatos. Precisava de libertar a alma que tanto parecia atormentar Armando.

- Pelos vistos, não te interessa tocar no assunto - insistiu ele. - Se tudo fosse tão simples e transparente como pretendes, não terias problemas em contar o que se passou entre vocês. Depois, és capaz de dizer que eu sou assim e assado, que sou chato e impertinente, mas és tu que, no fundo, provocas esta situação, ao não seres capaz de comunicar com quem fala contigo. Se não dizes nada, é porque estás a pensar noutro! Se estivesses a pensar em mim, respondias às minhas perguntas. E se estás a pensar noutro, estás a ser-me infiel. Logo na primeira noite! Claro que Arnaldo não apareceu por acaso no cinema. Se calhar, vocês tinham combinado ir os dois a uma sessão, mas depois desencontraram-se e, ao ver-te, ele já não quis explicações, pondo-se a andar, antes que fosse tarde demais.

- Quando acabares de inventar coisas, avisa - balbuciou ela.

- Dizes que estou a inventar, mas não esclareces nada. Se eu estivesse de facto a inventar, havias de me corrigir. Mas até pareces mergulhada no secreto prazer de me ver adivinhar o que se passa na tua vida, como quem assiste a um filme que não teve coragem de realizar.

- Não deves estar bom da cabeça - ripostou Artemísia. - Se bem te lembras, tu e Arnaldo já estavam juntos a conversar quando me aproximei.

- Quem fala em aproximação és tu... - disse Armando. Se não te tivesses metido na conversa, nada disso teria acontecido... Não nos tínhamos conhecido e agora não estávamos aqui a discutir.

Artemísia replicou que não pedira para lhe ser apresentada e que, por isso mesmo, a responsabilidade devia ser atribuída a Arnaldo. De qualquer maneira, confessava que se aproximara de ambos com o secreto desejo de conhecer Armando. Só que este se recusava a aceitar tal explicação. A seu ver, Artemísia dizia aquilo apenas para o acalmar, pois fora mais do que evidente que a sua intenção era ficar com Arnaldo e que este, por ser amigo de Armando, é que se afastara estrategicamente.

- Ou porque já não podia ver-te na sua frente! - disse Armando. - Não te esqueças que conheço Arnaldo muito bem. Se digo que houve alguma coisa entre vocês é mais pelo que conheço dele do que pelo que conheço de ti.

Artemísia colocou as mãos sobre o ventre e manteve-se de olhos fixos no tecto, fazendo um grande esforço para se controlar. Depois, a ver se ele acalmava, virou-se para o lado direito, de costas para a voz que não se calava. Os cabelos negros escorregaram-lhe para o rosto, fazendo-a sentir-se mais protegida da fúria de Armando. Com o sumo de morango já seco no corpo, ele parecia ter fervido num banho de tinto. Mas a sua obsessão estava toda em Arnaldo.

- Vendo bem as coisas, vocês são os dois muito iguais - reflectiu Armando em voz alta. Já conheço Arnaldo há muitos anos e nem sei onde ele nasceu. Por alguma razão isso acontece. E, agora me lembro, também o conheci numa sala de cinema! Será apenas coincidência? Ele tem aquela uma cara de sexo que nunca mais acaba, mas sempre foi esquivo em falar-me sobre qualquer miúda com quem tivesse ido para a cama. Já agora, importas-te de dizer qual de nós preferes, qual de nós é mais convincente entre os lençóis?! Por que paraste de me dar massagens? Estavas a pensar nele e de repente apercebeste-te que ele era outro? Ou será tudo uma questão de conta bancária?...

E Armando calou-se, de súbito, com a sensação de que tinha passado os limites. O silêncio entrou e encheu os cantos de um líquido venenoso impossível de travar. O tempo estendeu-se pelos anos fora. Sem palavras. Artemísia continuava de costas para ele. De costas para o significado da frase que Armando proferira. Recusava-se a repeti-la para si mesma. Via-se que já não juntava as sílabas dos vocábulos. Já não via sentido nos ecos que perduravam... Estava toda enrolada sobre si própria, com uma das mãos entre as pernas, uma mão tensa, pequena, frágil, fechada como se guardasse um anel maldito.







8




Armando sentiu que Artemísia poderia despedaçar-se em mil partes se ele avançasse com um dedo sobre os lençóis. Ou levantar-se-ia mesmo para o agredir de repente.

Pensou em telefonar a Arnaldo, mas depois de reflectir uns instantes percebeu que o melhor seria não se precipitar. Arnaldo não gostaria de ser incomodado àquela hora da manhã.

De uma forma ou de outra, se Arnaldo alguma vez se envolvera intimamente com Artemísia, acabara por desistir, a avaliar pela facilidade com que no átrio do cinema tudo fizera para que Armando e Artemísia ficassem juntos. Mas também podia ser que Artemísia o tivesse abandonado...

Um dia, Arnaldo chegara a convidar Armando para saírem com umas amigas e as recordações que guardava da experiência não eram as mais entusiasmantes. Nessa altura, o convívio íntimo de Armando com mulheres era nulo. Acabaram todos num quarto qualquer, de uma casa qualquer, de um colega qualquer. Apagaram as luzes e deixaram as horas correr, cada um agarrado a alguém, abraçado ao pescoço de quem lhe tinha calhado em sorte, um par deitado no sofá, outro na alcatifa, outro encolhido junto à porta, outro ainda perdido no escuro, sem sítio certo, sem definição...

Armando estava sobre a alcatifa e não se sentia à vontade porque de cada vez que estendia uma perna tocava num sapato que estava ali a poucos milímetros de distância... O que mais o incomodava era desconhecer se se tratava de um sapato de mulher ou de homem. Não sabia como reagir, como proceder, como pensar... Sentia os códigos baralhados por completo. Às cegas, os sapatos faziam-lhe uma impressão incontrolável. Não sabia se eram grandes ou pequenos, castanhos ou azuis, com pala ou atacadores, de salto alto ou baixo, a não ser que se pusesse a apalpá-los minuciosamente, o que não era de todo conveniente naquela situação.

Os sapatos eram importantes porque eram a base das pernas, o seu ponto de apoio. Mas havia uma grande diferença entre as pernas dos homens e das mulheres. E Armando sentia-se especialmente perturbado ao pôr a hipótese de ficar envolvido com uma quantidade de pernas, sem saber bem onde os factos realmente começavam. Com a pressa, a maioria das pessoas não tinha tirado os sapatos, entregando-se uns aos outros com sofreguidão.

Os sapatos davam consistência às atitudes. Eram uma forma de solidificar a relação entre os pés e o chão. As pessoas sentiam-se seguras com os sapatos nos pés. E podiam desatar a correr a qualquer momento.

Na cama, os sapatos podiam mesmo ser uma arma. Na noite em que se viu estirado sobre uma alcatifa tendo a seu lado uma mulher que nunca antes vira na sua frente, pouco antes de a luz se ter apagado, Armando recordava-se de ter visto Arnaldo estendido no sofá ao lado de uma gorda que quase o devorava com os avanços de seios e braços, o que de certa maneira contribuiu para que Armando ficasse com a ideia de que Arnaldo era um ser sexualmente superior. Visivelmente atarefado com a mulher que lhe coubera em sorte, Arnaldo fartou-se de recorrer a várias soluções menos ortodoxas, ao ponto de ter tentado satisfazer a companheira metendo-lhe o pé calçado entre as pernas unidas pelas carnes redondas e flácidas. Ela agarrou-se-lhe ao ouvido e deve ter suplicado que ele não lhe rasgasse as meias! Quem se aguentava com uma mulher daquelas tinha que ser especialmente dotado.

Depois do quarto ter ficado às escuras, o movimento de braços, pernas, sapatos, lábios, seios, rins aumentou vertiginosamente. Arnaldo já devia estar nas nuvens de uma montanha russa, quase sem respiração. Armando lembrava-se de uns sons de beijos salivosos que se sobrepunham aos gemidos de excitação que percorriam o quarto, enchendo a casa de rumores.

Num momento em que Armando hesitava sobre o que fazer com a mulher que tinha a seu lado e que lhe acariciava o peito com as mãos quentes, sentiu a biqueira de um sapato mesmo junto ao nariz. Alguém lutava pela conquista de mais espaço, perdido na escuridão das apalpadelas. Armando desviou-se, mas logo apanhou com a fivela de um cinto nas costas! Até parecia que o queriam castigar pelo seu acto.

Se avançasse sobre a mulher que estava com ele, corria o risco de cair nos braços de outra, ou de outro. A confusão seria tal que alguém acenderia a luz e ele ficaria exposto aos olhos de todos. Então, avaliariam o seu estado, analisariam a sua posição, fariam interpretações sobre o movimento dos seus braços, pernas e dedos. Fariam comparações, considerá-lo-iam pior do que Arnaldo...

Pôs-se a imaginar por entre os olhos às escuras os pormenores do que os outros estariam a fazer. E só fazia contas a braguilhas desabotoadas e camisas abertas por mãos sem controlo.

- Toma cuidado... - disse uma voz feminina a pouca distância do ouvido esquerdo de Armando, o que o deixou envolto em dúvidas. Seria a mulher que estava com ele ou outra? E o recado ser-lhe-ia dirigido ou a outro? E a que tipo de cuidado se referiria? Que alcance teriam aquelas palavras suspensas na amálgama da noite?

Armando tinha uma das mãos entre as pernas da companheira e chegou a pôr a hipótese de estar a ir longe demais. Não queria magoá-la, ou ofendê-la, mas também não queria dar parte de fraco, ou de ignorante. Era difícil conseguir o equilíbrio numa tal situação. Se ao menos pudesse ver com clareza, em vez de se limitar a especular, o que estaria Arnaldo a fazer, já teria um ponto de referência. Mas só podia imaginá-lo estendido sobre as carnes imensas da gorda, tacteando, testando, resfolegando pelas ventas de um touro.

De uma certa maneira, Armando estava ali como quem está numa sala de cinema. Parecia não acreditar no que estava a acontecer-lhe. Estendido ao lado de uma mulher, sobre uma alcatifa, como se ela fosse a actriz de uma fita nunca vista, recortada no escuro da visibilidade, podia tocá-la, senti-la, cheirá-la... Só não a via como nos filmes normais. Era como se a película rodasse, embora de luz apagada, fazendo acontecer a vida de qualquer maneira. E o cinema talvez fosse aquilo mesmo, a visão de um espaço, de um tempo, de um desejo, na outra margem da luz, com gente viva, palpável, sensível, a um passo de atingir a realidade, mas sem nunca o conseguir. O que a maioria das pessoas observava era a projecção do movimento através da luz, só que o cinema não se limitava a isso. O cinema era muito mais, era tacto e odor, mudança, salto entre realidades impossíveis, realização sem materialização. O cinema era tão real que se tornava claro aos olhos de todos, como naquela noite em que Armando fora aportar a uma casa qualquer, de um desconhecido qualquer, e se vira deitado na alcatifa ao lado de uma mulher, que o abraçava e beijava, e se deixava tocar, e se insinuava, por entre pernas e sapatos oriundos de ignotas paragens, enquanto ele elaborava raciocínios apressados sobre a reacção que devia ter.

Incapaz de perceber que atitude tomar, para não se ferir nem ferir a mulher que estava com ele, decidiu sair para a rua, arrependido e confuso, deixando para trás uma anarquia de gestos, suspiros e ditos.

Ele não quis fazer muitas contas sobre a situação, não quis saber se ganhava ou perdia, se procedia bem ou mal, e saiu mesmo do quarto, andando aos tombos pelo corredor, até à porta exterior.

Certificou-se de que tinha os dois pés no passeio, reparou que ninguém lhe surripiara os sapatos, avaliou-lhes o brilho, olhou para a direita, depois para a esquerda. Não sabia onde estava, talvez no Bairro Alto, talvez em Alfama, talvez na Madragoa.

Só via carros a passar para um lado e para o outro, com os faróis iluminando pedaços de noite à semelhança de projectores ambulantes em salas de cinema endoidecidas. Tudo era rápido, fugaz e incontrolável naquela espécie de autoestrada sem limite de contaquilómetros. Os seus olhos estavam a exagerar. Naquela zona de Lisboa, naquele ano, àquela hora, era impossível haver tanto movimento, tantos automóveis, tantos rostos desconhecidos a vaguear.

Mesmo assim, Armando receava atravessar a rua, tal era a vertigem do momento. Mas sentia que tinha que fazer alguma coisa. Pôs-se a caminhar para a direita, sobre o passeio, olhando de viés para as portas dos estabelecimentos comerciais que ainda se encontravam abertos.

A certa altura, viu uma cervejaria, cheia de gente e de ruído. Entrou, olhou os rostos que não conhecia, encostou-se ao balcão e desatou a beber desalmadamente.

O empregado servia-o de forma mecânica, entregando-lhe cerveja atrás de cerveja, como se Armando estivesse a competir com a sua própria frustração.

Meia hora depois, olhava em volta e continuava a não divisar saída para o seu caso. Os mesmos rostos vagos e pálidos, o mesmo barulho, o mesmo movimento, enchendo a cervejaria de luzes e reflexos de brilhos que saltavam dos copos para a atmosfera carregada de fumo. Já nem se lembrava do nome da mulher com quem estivera deitado na alcatifa até há poucos momentos atrás. A cerveja ainda não lhe fizera desaparecer da boca o sabor dos beijos. A lembrança das carícias que não tivera coragem de levar até ao fim saltava-lhe diante da vista num galope circular que nunca saía do deserto da tela. E via, ainda, o sapato de Arnaldo tentando ganhar espaço por entre as pernas da gorda...

Enquanto reflectia sobre os incidentes da noite, um homem aproximou-se dele e disse-lhe qualquer coisa que ele não compreendeu. Parecia uma língua estrangeira. Armando respondeu com movimentos afirmativos da cabeça.

O outro, contudo, pareceu não ficar satisfeito..., mas Armando fingiu estar ocupado com um assunto importante e não quis saber mais do intruso.

Quando reparou que o estrangeiro tinha ido dar uma volta, estendeu a mão para uma travessa que estava sobre o balcão, sem se preocupar se havia gente a olhar para ele, agarrou num frango e veio sentar-se à porta do estabelecimento a devorá-lo.

Pensava na mulher que deixara no quarto escuro e dava uma dentada no frango, pensava de quantos sapatos e apalpões estaria ela rodeada naquele momento e dava outra dentada, pensava no rumor dos beijos que esvoaçam no quarto escuro e voltava a dar uma terceira dentada...

Entretanto, colocava no chão, entre os pés, os ossos de galinha, todos juntos e organizados, para não conspurcar o ambiente.

A primeira vez que estivera com uma mulher, às escuras, em cima de uma alcatifa, não dera conta do recado.

O pior de tudo é que a sua fuga para a cervejaria seria encarada como um acto de cobardia por parte de quem se tivesse apercebido da ocorrência, a começar pela abandonada. Voltar atrás nada adiantaria. Até porque é sempre impossível voltar atrás, seja em que circunstância for. Sempre que se quer voltar atrás, no fundo, só se está a avançar noutra direcção, quantas vezes na direcção menos aconselhável.

Se, um dia, Armando voltasse a encontrar-se com a mesma mulher, o que podia fazer era evitá-la, desviar os olhos, passar ao lado, dar uma desculpa, adiar o confronto com a realidade.

A cerveja e o sabor a frango misturados com a memória dos sapatos deslizando na alcatifa de breu assim o aconsellhavam.

Àquela hora da noite, Lisboa era uma cidade que não vinha no mapa. A sua localização era uma cervejaria algures num bairro antigo, sentado a uma porta, com ossos de frango alinhados aos pés, cadáveres desconjuntados sem nexo para além da refeição que acabara de tomar.

A todo o momento, esperava que viessem apresentar-lhe a conta das muitas cervejas que bebera e do frango que tirara da travessa sem avisar. O pior de tudo é que não tinha um centavo no bolso. Nem cheque, nem cartão de crédito.

Mas o tempo passava, as pessoas entravam e saíam da cervejaria, passando-lhe ao lado com a maior das indiferenças, e ninguém parecia reparar que ele existia.

Armando olhou em volta e sentiu que tinha uma oportunidade de ouro para se ir embora sem pagar. Foi o que fez. Procurando não pensar em nada, pôs-se a andar em sentido contrário ao que ali o trouxera; procurando não pensar em nada, pôs-se a mexer; procurando não pensar em nada, pôs-se a procurar com os olhos o número 27. Numa aflição. O número 27 era a única coisa de que se recordava. Tanto quanto se lembrava, 27 era o número da porta na qual entrara agarrado a uma mulher e saíra pouco tempo depois sozinho ao encontro do mundo que a noite fizera em cacos junto às fachadas vazias dos prédios.

Não sabia mais nada, não sabia a cor nem o tamanho da casa, não sabia se havia três portas ou apenas uma. Só o número 27 o perseguia. Até já nem estava certo se o número que procurava correspondia ao da casa em que estivera até há poucos momentos antes. Mas sentia que havia qualquer coisa com o número 27. Seria a própria mulher com quem estivera? O que tinha a fazer era encontrá-la. Encontrá-lo.

A certa altura, deu de caras com o número 39 e ficou subitamente confuso, já não sabendo se procurava o 27 ou o 39. Apesar de os dois números nada terem a ver um com o outro. Pelo menos, aparentemente. Armando parou, olhou em volta, não viu ninguém entrando ou saindo da residência, pôs a mão no puxador, pressionou. Em vão. Estava trancada, não devia ser a casa que procurava. Pelo sim pelo não, pôs a biqueira do sapato no ângulo inferior esquerdo da porta e deu um pontapé. Nada. Desistiu do número 39. E pôs-se a procurar de novo o 27.

Encontrou-o algum tempo depois, quando já sentia uma náusea que lhe toldava o olhar e o empurrava para as margens lodosas das ideias emaranhadas. Encaminhou-se para o quarto onde estavam os colegas e perdeu as forças. Olhou em volta, sem nada ver, sem palavras, esforçou a visão, ainda pôs a mão em pala sobre o nariz, mas sentiu que o mundo ia acabar ali mesmo e que nem assim ele conseguia acertar com a cova onde estava enterrada a mulher que ele abandonara e que agora procurava no regresso.

Quando acordou no outro dia, deu de caras com uma enorme mancha de vomitado sobre a alcatifa. Era o que restava do frango que ingerira na noite anterior. Ali estava ele, aos pedacinhos, em pasta, sobre a alcatifa..., ali estava o seu problema, aos bocados, rente à lembrança de algo que se esvaíra...

Sentiu um aperto no estômago. Todos se tinham ido embora, certamente enojados com a porcaria que ele fizera e haviam-no deixado ali, sem destino, esquecido, transformado num porco à espera de seguir para o matadouro. O que mais o atormentava era pensar na opinião com que ficara a mulher que deixara para trás e que provavelmente se teria desenrascado com outro qualquer, no contorno escuro de um sapato, no vão de uma sombra, na imensidão de uma parede sem cor, na boca de uma rosa, num braço em volta da excitação, num corpo ardendo por causa de um gesto... E, no meio daquilo tudo, o seu vómito.

Armando levantou-se, quase desconjuntando-se, sempre com a mancha da alcatifa diante dos olhos e a biqueira de um sapato a estourar-lhe na cabeça. Deu duas voltas sobre si mesmo, sem ter a mínima ideia acerca do sítio onde se encontrava.

Nada ouvia, nada compreeendia, nada imaginava. A noite anterior parecia-lhe um sonho incerto e vago. Só lhe faltava aparecer agora a polícia a qualquer instante, prendendo-o por invasão de propriedade alheia, ou por não ter pago a despesa da cervejaria na noite anterior.

De qualquer modo, era seu dever limpar o tapete. Nem que fosse para fazer desaparecer a marca do seu “crime”. Mas isso obrigá-lo-ia a procurar um balde com água e um pano e desinfectante e uma quantidade de coisas ridículas. Cirandando pela casa, corria o risco de encontrar alguém e ter que dar explicações.

Decidiu escapulir-se, mais uma vez. Quanto antes. Porque o mais certo era nunca vir a saber-se quem vomitara sobre a alcatifa. A não ser que interrogassem todos os que haviam estado ali, ou que se dispusessem a mandar analisar a mancha que fazia a eternidade daquela noite.







9




- Deixa de fazer tanto barulho! - disse subitamente Artemísia, continuando de costas para ele, sem tirar a mão de entre as pernas.

Armando não respondeu, mas pôs a hipótese de ela ter ouvido os seus pensamentos, acompanhando-o na viagem até há uns anos atrás... Às vezes, ele falava alto sem se aperceber. Ficou preocupado. Artemísia poderia estar a ouvir coisas imaginárias. Coisas que só aconteciam na sua cabeça.

- Ao menos podias respeitar o meu estado - insistiu ela. - Se estás arrependido do que fizemos, não tenhas medo de o assumir.

Armando permaneceu calado e imóvel. Artemísia estaria provavelmente a sonhar com algo pouco aconselhável e não convinha dar-lhe pistas.

- Não há nada pior do que o arrependimento - disse ela. - Sempre dei tudo para nunca me arrepender do que fiz na vida. Não me venhas agora com teorias culpabilizadoras. Aponta o dedo ao que fizeste e deixa-me em paz. Talvez não fosse má ideia abrires o jogo. Afinal, que direito tens tu de andar a questionar-me quando praticamente não me conheces?! Quem me dera nunca te ter encontrado. Escusavas de me ter arrastado para a tua casa, com a desculpa de me quereres conhecer a toda a força. E até com os meus sapatos fazes problemas. Para ti, nada está bem. A tua posição revela bem quem és, de facto - continuou ela, sem se preocupar em verificar se ele a ouvia. - Ainda nem te atreveste a dizer se sou bonita, ou não. Só pensas em ti e na tua satisfação. Só te preocupas com o imediato e com raciocínios que possam embaraçar quem gosta de ti. É triste passar uma noite inteira com uma pessoa que nem tem a coragem e a sinceridade de fazer um elogio. Ainda nem me deste um bocado de carinho. Depois de me conquistares, desinteressaste-te de mim. És frio e distante...

Armando achou que só teria a ganhar em deixá-la falar. Acordada ou a dormir, lúcida ou louca, ela havia de se expor. Em maior ou menor grau. E o seu objectivo de a conhecer acabaria por ser atingido.

Ele não seria capaz de continuar uma relação sem bases. Por uma simples noite, ainda se compreendia, pois uma simples experiência não envolvia necessariamente compromissos, mas prolongá-la poderia ser desastroso. Principalmente se tudo ficasse por esclarecer. Talvez fosse mesmo um perigo. Os arranhões nas suas costas eram prova disso.

Nunca lhe acontecera fazer amor com uma mulher de sapatos! Ainda por cima, ela não apresentara motivos para a sua atitude. Inicialmente, ele não deu grande importância ao facto. Até porque só via uma coisa à sua frente..., só via o corpo dela, a chama dela, a vibração dela. Mas agora que olhava para trás mais friamente, via-se obrigado a reconhecer que o comportamento de Artemísia tinha muito que se lhe dissesse. Uns sapatos castanhos sem nada de especial com os quais se faz amor durante quase toda uma noite são um caso digno de reflexão. Faziam-lhe lembrar a tropa. Por estranho que fosse. Embora a tropa nada tivesse de sensual ou atraente. Só botas, só pés calçados, só passos no chão. Como os sapatos de Artemísia sobre a leveza dos seus lençóis.

Depois, ela arranhara-o despropositadamente e virara-lhe a cozinha de pernas para o ar. Artemísia devia ser desequilibrada. E se o não era, parecia-o.

- Já te disse para fazeres menos barulho! – voltou ela a pedir.

Era inexplicável que ela falasse em barulho quando não se ouvia uma mosca em casa de Armando. O ruído só podia estar na cabeça dela. Por isso tinha pedido que ele respeitasse o seu estado. E falara de arrependimento...

Armando tinha que fazer alguma coisa para resolver a situação em que se encontrava. Certa vez, um amigo pedira-lhe para passar a noite em sua casa e só decidira ir-se embora quinze dias depois! Passara horas a declamar poesia debaixo de uma cama, comera alarvemente e não deixara ninguém dormir. Não fosse Artemísia pertencer ao mesmo género de pessoas.

Ela acusava-o de ser “frio e distante” porque estava a prender-se a ele. Para a fazer descolar, havia que pôr a limpo a questão dos sapatos.

Não interessava o que significavam, quanto haviam custado, onde tinham sido comprados. O que interessava era saber por que razão Artemísia os mantivera calçados durante toda a noite, apesar de a certa altura ele próprio a ter impedido de os descalçar.

-Tens alguma coisa escondida nos sapatos? – perguntou Armando, de forma repentina, procurando apanhá-la desprevenida.

A resposta demorou uns segundos, mas veio cortante e directa:

- Vê lá se deixas de te meter com os meus sapatos. Se me queres ver a andar, di-lo de forma directa e frontal. Não estejas com rodeios...

- O problema não são os teus sapatos, mas o facto de estares sempre com eles nos pés...

- É uma maneira de manter os pés quentes.

Armando desatou a rir para descongestonar o ambiente e disse-lhe que estava a falar a sério. Ela respondeu que também estava a sério.

- Há muitas outras maneiras de aquecer os pés – argumentou ele. – Custa a crer que o sexo não tos ponha a ferver! Se não tens problema com os sapatos, por que razão não os tiras?

- Não sou igual a outras que possas conhecer.

- Disso já eu me tinha apercebido. Mas não acredito que os sapatos te sirvam para aquecer os pés. Ainda por cima, estamos no Verão. Não precisas de os aquecer, mas de os refrescar. Umas sandálias seriam mais práticas, uns chinelos, uns ténis...

- Se eu te dissesse a verdade, não acreditarias.

- Cá estás tu a contornar as situações. Não fales no condicional, por favor. Não podes imaginar as coisas em que sou capaz de acreditar, ou não...

- Estes sapatos são um assunto muito pessoal...

- Daqui a pouco ainda vais dizer que são uma recordação de família.

- E depois? Que mal é que tinha se fossem mesmo uma recordação de família?

- Os sapatos gastam-se e as recordações de família não...

Armando pôs a hipótese de ela não tirar os sapatos para tentar esconder algum defeito físico. Talvez ela tivesse um pé com mais de cinco dedos... Talvez ela não tivesse dedo mindinho num dos pés... Talvez ela cheirasse mal dos pés. Fosse o que fosse, Armando não se sentia à vontade para abordar o assunto.

A personalidade dela era bastante imprevisível, embora os sapatos que usava apontassem no sentido contrário. Ela falava no ar, para o nada, arquitectando evasivas em cima umas das outras, sem se preocupar em explicar a sua lógica ou em analisar as suas consequências.

- Contigo, sei que nunca chegarei a lado algum. És egoísta, fechado, calculista, ingrato. Armando achava que ela estava a tentar ofendê-lo, para o obrigar a uma reacção mais concreta, para o obrigar a dizer alguma coisa, a fazer alguma sugestão, a abrir alguma porta. Provavelmente, não era mais explícita para o levar a comprometer com maior facilidade. Mas ele estaria alerta e resistiria a todas as artimanhas.

- Há pessoas que procuram esconder as suas fraquezas atrás de uma máscara, a máscara do silêncio - disse ela bruscamente. - É curioso como de repente deixaste de manifestar interesse em conhecer-me e passaste a dedicar toda a tua atenção aos meus sapatos. Parece que te excitam! Se queres conhecer-me através deles, só perderás o teu tempo. Já imaginaste que posso usar este estratagema para despistar as pessoas? É preciso ter algumas defesas para sair com um desconhecido, à noite...

Artemísia explicou que, estando calçada, por exemplo, podia desfazer os testículos de um homem a qualquer momento! Se não o havia feito com Armando foi porque ele a abordara de forma correcta.

Armando chegou a mover os lábios para lhe dar uma resposta, mas travou no último instante, a fim de não alterar drasticamente o rumo da conversa. Artemísia estava a provocá-lo de várias formas, disparando sobre a presa imóvel dos ângulos mais diversos. Procurava não dar-lhe hipóteses de fuga. Para cúmulo, ele estava confinado a metade da cama, um espaço horizontal especialmente vocacionado para se morrer de um instante para o outro.

Naquela noite, Armando já tinha passado por tudo com Artemísia. O voo, o repouso, a loucura, o impensável, a surpresa, a conquista, a disputa, o amuo, o desespero...

A postura dela acabava por destruir os momentos intensos que ambos tinham vivido nas últimas horas. E ele já quase recordava a viagem de táxi do cinema até sua casa como uma experiência de há anos atrás que apetecia reviver. Ele já quase recordava o prazer que conduz à sensação da morte como uma experiência vivida séculos antes e que o futuro não saberia repetir, por mais longínquo que fosse.

- Quando há confiança, tudo se resolve – declarou Artemísia. - Eu só queria ver até que ponto eras capaz de chegar, ou até que ponto eras capaz de me julgar superficialmente. Esta noite, houve um momento em que tive a certeza que estavas do meu lado, apesar de nos termos conhecido há pouco tempo. Mas agora percebo que me enganei e que me julgaste intimamente pelos padrões de uma cadela vadia que se apanha na rua. A diferença foi que me apanhaste numa sala de cinema! E logo depois de me teres metido no táxi trataste-me de forma indecente, até parecendo que eu tinha passado a ser tua propriedade. Por isso não gostaste que eu te tivesse arranhado. Para não seres identificado com o “crime” que tinhas acabado de cometer...

- Em poucas horas, Artemísia tivera vários discursos. E recorrera a toda a espécie de palavras envolventes, sorrateiras, mordazes, que o desestabilizavam. À medida que as horas passavam, a sua capacidade de argumentação aumentava a olhos vistos, em vez de se esgotar. Cada raciocínio que ela apresentava era uma pedra atirada às suas costas, um gume afiado que se levantava nos ares e acabava por atingi-lo de forma implacável. Para o prender, ou para o aniquilar. Assim, quanto mais ele queria libertar-se, mais preso se sentia.

- Se o teu problema é Arnaldo - continuou ela - podes estar descansado porque nada existe entre nós. Somos apenas conhecidos. Ele chegou a propor que tivéssemos uma relação mais íntima, mas eu nunca quis. Não foi por não confiar nele, mas porque sempre desconfiei que nunca suportaríamos as constantes irritações de uma vida em comum. Como vês, consigo ser aberta desde o início de uma relação. Não sei se é por estar na tua casa, mas não tenho dúvidas sobre ti. Talvez seja o silêncio, o tom das paredes, a tua súbita retracção... Pareces com medo de qualquer coisa e isso reforça a minha confiança. Não me leves a mal por te ter chamado egoísta.

Artemísia dava voltas atrás de voltas para o apanhar desprevenido, para o imobilizar na rede das suas palavras em catadupa, dizia-se e desdizia-se, voltando a insistir no que já pusera de parte. Parecia uma borboleta sem asas ziguezagueando num labirinto. Ele teve a sensação de que ela usava o mesmo estratagema com outras pessoas. Porque o seu discurso era bastante mais automatizado do que a experiência de vida que a sua idade dava a entender...

Armando já nem sabia se o melhor era apressar o fim da relação que ambos tinham estabelecido naquela noite ou se devia prolongar tudo até que conseguisse realmente reunir dados para chegar a uma conclusão segura.

- Se queres tempo para pensar melhor no assunto, não há problema da minha parte – disse ela, antes que ele borrasse a pintura de uma vez por todas.

E Armando aproveitou a deixa para dizer que realmente era mais sensato esperar algum tempo, a ver no que dava aquela relação.

Mas ela apressou-se a sublinhar que ele não pensasse que ela ficaria eternamente à sua espera.







10




Armando disse a Artemísia que não se tratava de uma desculpa, mas explicou que se sentia perturbado por uma face pálida, de olhos negros e cabelos escuros, que via, ainda hoje, silenciosa, encostada no tempo, perpetuando-se para além dos limites do futuro. Era uma figura, sem palavras, que lhe aparecia de vez em quando, sobretudo nos momentos em que estava só. Sentia-se atordoado, nessas ocasiões, ouvia zumbidos dentro da cabeça, deixava-se levar por um sentimento de nostalgia, afundava-se numa tristeza inexplicável, entregava-se aos remoinhos da fantasia, mas tudo se resumia a isso mesmo, a uma breve passagem de memórias, sem fundo nem tecto, onde nada fazia sentido, nada tinha forma real, nada parecia capaz de alterar a sua vida.

Por várias vezes tentara estabelecer diálogo com essa mulher. Em vão. Naquela noite, via-a com nitidez, bem lá no fim da recordação.

A sua presença obrigava-o a recuar nos anos de forma inquestionável e definitiva. As duas coabitavam o seu espaço de forma paradoxal e profunda.

Armando estava pronto a garantir que aquela mulher que vinha do seu passado e que tanto o inquietava era mesmo Artemísia, uma outra Artemísia, uma espécie de sombra com cabelos negros que resistia na última fronteira da sua lembrança. E ela estava ali, a seu lado, na cama, sem ter consciência do que fazia despoletar dentro dele e dos anos que haviam antecedido aquele momento.

A mulher que o visitava tinha uma forma própria de sorrir, acanhada e felina, ao mesmo tempo. Ele alimentara o sonho de casar com ela, de viver a seu lado, mas agora não sabia, não tinha a certeza sobre qual delas viera das entranhas do tempo para se deitar com ele naquela noite ou para surgir através da porta que os anos haviam deixado entreaberta. Uma e outra tinham idêntica maneira de pensar através dos olhos...

Para responder a Artemísia, para resolver de vez o assunto com ela, Armando tinha que dizer o que lhe ia na alma, o que sentia, o que receava, o que previa. Ela podia não gostar de ser enclausurada no seu passado, ao ponto de nem ele próprio saber o que ela significava na sua vida, mas não podia deixar de fazê-lo, se queria ser verdadeiro consigo próprio.

Procurava descortinar uma luz nítida, uma forma definida, um reflexo concreto, que saltasse das cavernas do tempo e o reposicionasse no mundo, mas quanto mais se esforçava para compreender o que se passava com Artemísia mais dificuldade tinha em conseguir os seus objectivos.

O facto de ela lhe parecer alguém que tinha ficado preso na sua recordação excitava-o, mas, por outro lado, também o atemorizava porque não lhe permitia ter completo controlo sobre a situação.

Olhava para a mulher estendida a seu lado na cama e sentia que podia ter ascendente sobre ela. Porém, logo a seguir recuava ao reparar nos seus sapatos. Recuava e encolhia-se só de pensar no que eles poderiam conter. Uns pés, com certeza. Uns dedos de pés. Faltava saber quantos. E estudar minuciosamente o seu tamanho...

Armando não era capaz de tolerar uma situação de tal forma obscura. Se mantivesse a ligação com Artemísia, nunca chegaria a saber quem era ela de facto. O envolvimento afectivo impedi-lo-ia de ver com clareza. Por mais anos que vivessem juntos, a emoção havia de vencer tudo à volta. Por mais transparentes que fossem. Por mais sinceros. Por mais fiéis.

Armando recuou no tempo e recordou o dia em que foi castigado por se ter atrevido a escrever à pessoa que Artemísia lhe fazia lembrar. Tinha acontecido há muitos anos. Escrevera um bilhete simples, que falava de saudades, conversas ao nascer do sol, carícias na face. A mãe interpretara negativamente a sua atitude, descobrindo no texto intenções obscuras e reprováveis. Dera-lhe uma tareia com o sapato que tirara prontamente do pé. Nas mãos, nas costas, nas pernas, no pescoço. Armando sentiu-se humilhado e só. À noite, o problema agravou-se, quando o pai, ao saber do malfadado bilhete, o pontapeou no rabo com a biqueira do sapato, uma dor que se prolongou pelos anos fora.

Ele nunca esqueceu as agressões. E a mulher nunca chegara a saber o motivo pelo qual Armando se afastara dela definitivamente. Nunca tivera a certeza de nada. Nunca sonhara. Assim, ele deixara para trás uma pessoa que o havia marcado de forma singular. Para que todos a vissem. E desejassem. Uma mulher sem nome e sem palavras, só com gestos, que Artemísia lhe fazia lembrar de maneira incontrolada.

- Tenho que ser realista - disse ele visivelmente alheado do que se passava à sua volta. - Não me é possível tomar uma decisão tão importante em meia-dúzia de horas. Ainda por cima porque me fazes lembrar essa pessoa que continua a ocupar um lugar importante na minha vida. Não sei se alguma vez conseguirei libertar-me dela. Vejo-a sempre que estou só, em toda a parte, em todos os momentos, em todas as situações. E quando não a vejo só me preocupo em perceber por que razão assim é, por que razão ela se ausenta sem explicações, por que razão não é possível reconstruir a ponte que se interrompeu com o passado.

Era uma questão de coerência para Armando. Podia sentir-se atraído por Artemísia, até pelos seus sapatos, mas recearia sempre que ela fosse de outro. Por ser outra. Não lhe bastava o que vivera naquela noite para a identificar de forma inquestionável.

Ele não tinha projectos. Limitava-se a viver os dias que lhe iam saindo em sorte. Talvez porque nunca chegara a desprender-se do passado, o futuro nunca tivera grande significado na sua vida.

Muita gente estava no lado oposto, vivendo para o sonho e para a irrealidade, em busca de ser feliz.

Ele, por seu turno, esperava, eternamente, a rematerialização dos acontecimentos que o tempo devorara.

Antes de conhecer Artemísia, havia tentado por mais de uma vez refazer o edifício do passado que a vida lhe desmoronara. Mas nunca acertou o passo com o tempo. Chegara sempre demasiado tarde. Ou demasiado cedo. E, então, riam-se dele. Ou pelo menos dava essa ideia. O que o constrangia. Os outros eram sempre mais expeditos, mais eficazes, mais decididos, compreendendo tudo mais rapidamente. Ele hesitava, pensava melhor, receava enganar-se e perder as referências, confundia as coisas, desconhecia as consequências, media demasiado os riscos. E nunca dava o primeiro passo. Assim, via os acontecimentos passarem-lhe ao lado em acenos de comboio que não pára na estação para desaparecer na curva mais próxima. A sua terra estava resumida aos pés, aos nervos das mãos, aos braços, ao pescoço, ao apartamento para onde trouxera Artemísia, a mulher que lhe fazia lembrar todas as contradições e desafios. A sua Lisboa começava e acabava nele mesmo, de um braço ao outro, de uma palavra à outra, de uma pele à outra.

Não podia voltar a cometer os erros que o haviam marcado de tal forma. Por isso, tinha que se refugiar em algum sítio, agarrando-se a uma tábua segura. Impunha-se evitar o afundamento no desconhecido. Não queria que voltassem a rir-se dele como nos tempos da escola, deixando-o corado até às orelhas por uma coisa de nada, um breve rumor, uma ligeira deslocação de cadeira, um simples olhar sobre a claridade que a janela projectava rente ao soalho...

Ninguém saberia do seu caso com Artemísia. Se algum dia lhe fizessem qualquer referência a ela, responderia de forma evasiva, para não se comprometer.

Havia qualquer coisa nela que o atemorizava, que o fazia hesitar e depois recuar. Nada de concreto, mas algo ameaçador, um peso indefinido que podia destruí-lo a qualquer momento. Tinha a ver com os arranhões, com o sumo de morango, com a deambulação do discurso. Tudo o que ela fazia significava destruição ou construção. A sua entrega era uma recusa, uma recusa de palavras.

Eram quatro horas da manhã e não havia maneira de Artemísia dizer que tinha de ir para casa. Todavia, Armando não queria mandá-la embora sem mais nem menos. O importante seria que ela não esperasse pelo amanhecer. Mas que também não se sentisse rejeitada. Para evitar alguma reacção menos controlada. Ele tinha a sensação de que podia acontecer algo a qualquer momento, até ao último minuto daquele encontro. Uma tragédia que poderia até nunca se consumar, mas que constituiria sempre uma ameaça.

- Depois telefono-te a dizer alguma coisa... – balbuciou Armando com embaraço.

Não houve resposta do outro lado, mas ele sentiu que ela teve um sobressalto. Pelo menos, não tinha havido borrasca. Fez-se um silêncio prolongado que Armando aproveitou para ir ao telefone e chamar um táxi.

Minutos depois, ela sentou-se no colchão e pôs-se a recolher peças de roupa aqui e acolá. Fora mais fácil do que ele pensava.

Armando viu o corpo dela erguer-se, cambaleando, e desaparecer aos poucos sob o vestuário com que se ia cobrindo. Susteve-se numa perna, depois na outra, segurou-se à parede, retesou os músculos, apertou um botão nas costas, sacudiu o cabelo por entre a ondulação das sombras que vagueavam no quarto, ajeitou a gola da camisa... Fez tudo tão bem, de forma tão correcta e sóbria que Armando chegou a perguntar a si mesmo se não teria exagerado no retrato que fizera de Artemísia.

- Não me leves a mal – murmurou ele. – Mas tu é que disseste que não te importavas de esperar algum tempo.

- Não penses que me vais ridicularizar depois de tudo o que fizeste esta noite! – retorquiu ela subitamente alterada.

- Não fiz nada sem o teu consentimento...

- Sabes muito bem que eu não queria vir contigo. Quando as relações são apressadas, há sempre um que se farta antes do outro. O que é excessivo chateia e a verdade é que esta noite fomos longe demais.

- Ninguém te obrigou a nada...

- Há muitas formas de condicionar as pessoas...

- Se calhar, foi o que me fizeste durante as últimas horas...

- Não fujas ao assunto!

- Estás a provocar-me...

- Não vale a pena procurares desculpas...

- Vê lá se isto não acaba no meio de insultos e calúnias. Depois dos momentos que passámos juntos, seria estranho que nos separássemos com pedras na mão...

- Dás a ideia de estar só à espera de uma oportunidade para desferir o golpe final na nossa relação.

- Não se pode matar o que nunca nasceu...

- Então o que estive a fazer na tua casa até agora?!!

- Isso deves tu saber melhor que eu...

- Estás a sacudir a água do capote.

- Eu só me entendo com pessoas sinceras. Se te pões por aí aos rodeios, não vamos a lado nenhum.

- Mais coisa menos coisa, falta pouco para me expulsares da tua casa...

- Se calhar, era isso mesmo que gostavas que eu fizesse.

- Eu não tenho motivos para me ver livre de ti... Tu é que podes ter-te arrependido do compromisso que assumiste comigo.

- Não posso arrepender-me de uma coisa que não fiz.

- Afinal, em que ficamos?

- Daqui a uns dias, telefono-te a dar novidades...

- Uns dias são muito tempo. Podem até nunca chegar... Não quero voltar a ver-te na minha frente!

- Por favor, não queiras tomar conta da minha vida..

- Eu disse para me desapareceres da vista! Não me digas que também és traumatizado!

- Nunca te exigi nada, nunca te pus condições, nunca te encostei à parede...

- És um inseguro!

- Julgas que me chateia saber que foste para a cama com este e com aquele?...

- Quem te disse que eu fui para a cama com este e com aquele? Desde quando estou proibida de usar a minha liberdade? Queres confundir-me com quem? Com essa tal fulana sem pudor que passa os anos a olhar-te através de uma parede infinita?

- Escusas de envolver outras pessoas nesta discussão...

- Desde quando é que fazes as regras do nosso diálogo?

- Qual diálogo, qual quê? Está visto que não nos entendemos...

- Não nos entendemos porque não queres.

- Como posso entender-me com uma pessoa que faz amor sem se descalçar e que ainda por cima me deixa todo arranhado?!

- Já imaginaste se eu me pusesse aqui a descrever o que me fizeste esta noite? Nunca mais nos despachávamos. Os arranhões fizeram parte do envolvimento físico. Estavas tão excitado que nem te apercebeste de nada. Eu podia ter-te cortado aos pedaços sem qualquer problema.

- Pois olha que cortaste mesmo...

- Não sabes o que é cortar uma pessoa aos bocados!

- Se me acontecer alguma coisa, não precisas de ficar com problemas de consciência.

- Metes-me em cada uma que já não sei bem o que digo.

- Não consigo olhar para ti mais do que um segundo.

- Como se vê, és tu quem está a repelir-me.

- O táxi deve estar a chegar.

Os dois deixaram o apartamento e vieram a discutir no elevador como duas pessoas que vivem juntas há dezenas de anos.

Chegados à rua, Armando voltou a questionar os motivos pelos quais Artemísia nunca descalçara os sapatos. Ela replicou que ao preocupar-se com um pormenor tão insignificante ele só queria encobrir alguma coisa.

- Isso não é razão para te abespinhares...

- Mas foste tu que não paraste de te meter comigo toda a noite. Foste tu que nunca te cansaste de fazer perguntas, tentando saber coisas da minha vida...

- Posso ser tudo menos acéfalo. Eu seria incapaz de estar contigo e não tentar conhecer-te. Sei que não o consegui por causa dos sapatos. E tu nunca os tiraste porque sabias que eu ficaria a saber tudo... No fundo, são os teus sapatos que nos separam. É por causa deles que não nos entendemos.

Para Armando, o facto de Artemísia não ter tirado os sapatos era sinal de que alguma coisa ficava por revelar na sua vida. Mas ela replicou que não tirara os sapatos apenas porque não se sentira à vontade para o fazer. De qualquer modo, não se importava de pagar a despesa de algum estrago que tivesse feito no lençol.

Ele não queria saber de estragos no lençol, não queria saber de contas disto ou daquilo, não queria estar sempre a insistir na mesma coisa, para que não parecesse que ficara obsecado. Por isso, foi com alívio que viu o táxi aproximar-se e abrandar a marcha junto do passeio em que ambos aproveitavam todos os minutos para brandir argumentos.

No instante em que o veículo parou, Artemísia pedia desculpa pela confusão que deixara na cozinha, garantindo que não partira qualquer peça. Logo a seguir, abriu a porta do táxi e sentou-se no assento de trás com a rapidez de alguém que acaba de escapar às garras do demo. Na precipitação, um dos sapatos quase lhe saltou do pé, o que deixou Armando estático, perplexo, inquieto. Mas Artemísia não perdeu o sangue frio e limitou-se a enfiar de novo o pé no sapato, com ligeireza e convicção. A seguir, fechou a porta com estrondo. Mas, quando o veículo já se encontrava em andamento, Armando reagiu, por fim, pôs-se a correr atrás dele, batendo nos vidros, conseguindo abrir a porta que o separava de Artemísia e exclamando, enquanto se atirava para dentro do carro:

- Deixa-me só dizer-te mais uma coisa...




FIM