1
Na
sala de espera de um cinema, um homem dirigiu-se ao bar e pediu um
café, enquanto a alguma distância uma mulher se entretinha a ver os
cartazes que anunciavam os próximos filmes. Ele chamava-se Armando e
ela Artemísia.
Saído
dos lavabos, um segundo homem, Arnaldo, seguiu para o bar e,
reconhecendo Armando, cumprimentou-o efusivamente.
A
conversa ruidosa entre os dois chamou a atenção de Artemísia que,
de longe, reconheceu Arnaldo. Acenou e logo a seguir foi
cumprimentá-lo.
Feita
a apresentação de Armando, Artemísia e Arnaldo falaram de
banalidades, perguntando por este e por aquele.
E
quando Armando se preparava para falar sobre o filme, Arnaldo, que
acabara de ver a fita, deu meia volta, quase sem se despedir, e
desapareceu logo a seguir por entre as dezenas de pessoas que
entretanto tinham chegado e se aprestavam para entrar na sala.
Artemísia
e Armando ficaram entregues um ao outro. Nos primeiros momentos,
olharam-se sem saber o que fazer ou dizer. Era a primeira vez que se
encontravam, mas tudo indicava que veriam o filme juntos. A amizade
comum com Arnaldo seria suficiente para evitar que fosse cada um para
seu lado.
Como
não tinham tema de conversa, Armando disse sem grandes cuidados:
-
Podias ter trazido outros sapatos!
Artemísia
hesitou uns segundos, olhou-o como se não compreendesse os motivos
de tão súbita familiaridade, mas recompôs-se e acabou por
replicar, embora sem disfarçar a surpresa:
-
Não me digas que os meus sapatos te incomodam... - E logo a seguir,
num tom de voz mais desembaraçado: - És sempre assim tão descarado
e ofensivo?!
-
Só em situações especiais - retorquiu ele.
-
Nem sequer rodeaste a questão...
-
Gosto de ir directo aos assuntos...
-
De qualquer maneira, não me conheces o suficiente para falares nesse
tom.
-
Mas só falando nesse tom posso conhecer-te melhor.
Artemísia
estava de braços cruzados e olhos fixos em Armando. Defendeu que não
era possível conhecer as pessoas de um momento para o outro, mas ele
retorquiu que era preciso ganhar tempo, acelerando e encurtando
distâncias nas conversas.
Na
opinião de Artemísia, porém, as conversas não ajudavam grande
coisa, porque as pessoas eram geralmente superficiais e esquivas. Só
se tinha acesso à verdadeira face de alguém no dia a dia, na vida
concreta, nos momentos difíceis...
Armando
defendeu que as palavras eram essenciais, mesmo quando não davam um
retrato fiel da pessoa. Porque também se podia conhecer alguma coisa
ou alguém através da mentira.
Mas
ela replicou que não era bem assim, que a mentira afastava as
pessoas do seu verdadeiro caminho e que, por isso, as palavras eram
uma perda de tempo.
-
Estás a partir do princípio que as palavras só sabem mentir... -
disse Armando.
-
Se não mentem, servem bastante para contornar a verdade - disse ela.
-
Mas as palavras são um instrumento para a primeira aproximação
entre as pessoas!
-
Acho que não, o olhar está geralmente primeiro...
-
O olhar tem mais a ver com o cinema...
-
E alguma vez tiveste dúvidas de que o cinema é a grande verdade que
podemos encontrar na vida?
Entretanto,
ouviu-se o sinal para o começo do filme e ambos avançaram para as
escadas, enquanto Armando procurava os bilhetes no bolso da camisa,
das calças, da camisa outra vez...
À
medida que subiam para a sala, Armando quis saber de onde Artemísia
era natural, mas obteve uma resposta evasiva sobre o filme que se
preparavam para ver, o que o levou a pensar que aquele não era o
melhor momento para abordar o assunto.
O
importante, agora, era não deixar fugir Artemísia, não fosse ela
encontrar alguém conhecido e relegá-lo para segundo plano,
deixando-o sozinho às voltas numa sala escura entre as sombras das
cabeças mergulhadas no brilho do Verão.
Mas
ela apressou-se a encontrar lugar e a fazer-lhe sinal para que se
sentasse a seu lado.
-
Espero que não voltes a meter-te com os meus sapatos... - disse com
um sorriso malicioso.
-
Resolvemos isso depois do filme - respondeu ele.
Nessa
altura, as luzes da sala diminuíram de intensidade e o écrã
encheu-se de claridade e movimento.
Os
dois não voltaram a falar. A proximidade a que se encontravam
deixava-os protegidos de qualquer aspecto menos previsível.
Por
mais atenção que desse ao filme, Armando não conseguia
concentrar-se. Estava sempre a pensar em Artemísia. Percebeu que
seria ridículo não ter ideias, depois, para trocar impressões
acerca do filme. Poderia alegar umas quaisquer dores de cabeça, mas
isso deitaria por terra a possibilidade de a convidar para tomar um
copo a seguir à sessão.
Armando
espiou Artemísia pelo canto do olho e viu-a inclinada para o lado
oposto ao seu, com a mão sob o queixo, sem olhos para outra coisa no
mundo senão para o que acontecia na tela. Tentou adivinhar em que
estaria ela a meditar, mas naquele momento não conseguiu. Havia
pessoas cujos pensamentos percebia com relativa facilidade, seguindo
mesmo a sua evolução, hesitações e múltiplas derivações, mas
Artemísia não era uma dessas. Muito mais numa sala às escuras onde
não era possível ver os pormenores da sua pele, da sua boca, das
suas mãos, elementos que formavam um conjunto essencial para a
compreensão dos contextos.
As
pernas eram uma pista, conforme estivessem afastadas, cruzadas,
aconchegadas, encolhidas, estendidas, etc. Sem grande esforço, podia
observá-las, apesar do escuro, devido à ligeira claridade que
deslizava do écrã para o pavimento, criando uma névoa subtil que
acendia os objectos a partir do nada, a partir da escuridão
impenetrável.
Artemísia
estava com a perna direita cruzada sobre a esquerda, imóvel,
aparentemente serena e esquecida dos sapatos. Entretanto, com o
passar do tempo, o corpo foi-lhe amolecendo e, a dado instante, o seu
braço tocou no de Armando, sem que nenhum deles tivesse a
preocupação de se afastar, até porque a distância entre as duas
cadeiras era exígua.
Em
poucos segundos, tornou-se evidente que ambos analisavam com rapidez
vertiginosa o significado do que estava a acontecer entre os seus
dois braços, o primeiro contacto, uma espécie de primeiro beijo
proibido no sótão escuro da adolescência.
Pensavam,
olhando fixamente o ecrã. E quanto mais fixamente observavam as
imagens gigantes e luminosas do movimento na tela, mais concentrados
estavam no ponto exacto em que os seus braços se uniam.
O
tempo em que se mantiveram imóveis, olhando o desconhecido para lá
da tela foi decisivo para tudo o que viria a suceder a seguir. Se
qualquer deles tivesse recuado, Artemísia e Armando ainda hoje não
se teriam conhecido.
O
mútuo consentimento do gesto, da posição dos braços, da pressão
nos músculos, encheu de calor a aproximação entre os dois. Sem
palavras, de facto, havia qualquer coisa em Artemísia que cativava,
que prendia, que convencia. E, em Armando, a mudez inquietava,
despertava interrogações, acelerava os intervalos entre
pressentimentos.
O
contacto físico deu-se numa zona da pele sem grão de areia, sem
veia saliente, sem tecido crispado. Era doce o tecido que unia os
seus braços sob o feixe solitário de luz que atravessava a sala de
um extremo ao outro.
Para
Artemísia, o braço de Armando era um cinema que se tinha
desprendido da tela iluminada e se lhe colara à pele sem avisar. Não
se preocupou com o que ele pensaria. Porém, manter o contacto físico
seria fazer passar uma mensagem que Armando naturalmente teria toda a
liberdade de interpretar...
Por
seu turno, ele não queria dar a ideia de que estava disposto a
aproveitar-se de uma situação aparentemente fácil, ou casual. Uma
vez que não conhecia Artemísia, era-lhe difícil perceber se o
toque dos braços era intencional, ou não. Mas, se se afastasse,
poderia dar a ideia de que não queria envolver-se, ou que lhe
desagradava o seu contacto. O que não era verdade.
A
forma como ela reagira aos seus comentários sobre os sapatos não
havia sido totalmente desanimadora. Ao menos, dera-lhe hipótese de
argumentar sem inibições, o que garantia, à partida, um bom
começo.
Armando
adivinhara qualquer coisa nos olhos dela. Qualquer coisa de
afirmativo, de aventureiro, de arriscado, de inadvertido, por onde
seria possível entrar sem necessidade de recorrer a esquemas
pré-concebidos. Mas ele também não era de esquemas. Quando os
notava nos outros, afastava-se prontamente. E se, por algum motivo,
ele próprio os fabricava, não hesitava em desistir de tudo, mesmo
que acabasse por sair prejudicado.
Armando
pensou se o que estava a sentir não seria simples ilusão. A própria
Artemísia estava a seu lado no contexto de um filme que decidira ver
e não exactamente no contexto de um encontro originalmente marcado
com ele. Por isso, o mais natural era que o toque entre os seus
braços fosse espontâneo e casual. No entanto, essa situação
passaria a fazer parte da história de ambos. Independentemente da
dimensão e das consequências do seu impacto, Artemísia e Armando
ficariam marcados (em maior ou menor grau) pela escuridão imprevista
de uma sala de cinema. Pela forma como ela os uniria, ou afastaria.
Artemísia
fez as contas sobre o tempo em que o seu braço se encontrava
encostado ao de Armando. "Se isto durar mais de dois ou três
minutos, será caso para desconfiar...", pensou ela consigo
mesma.
Passado
mais ou menos esse tempo, sem que a situação se alterasse, ela
considerou a hipótese de se levantar e vir embora, mas enquanto
analisava as várias possibilidades, concluiu que, se o fizesse,
poderia interferir no destino, de forma drástica, injusta e
precipitada. Em alternativa, pensou ir à casa de banho, o que lhe
abria portas para uma outra solução: no regresso, perder-se-ia e
não encontraria a sua cadeira, o que a obrigaria a sentar-se noutro
lugar até ao fim da sessão; depois, poderia sempre explicar mais
tarde o percalço a Armando que, decerto, não levaria a mal o
sucedido.
Mas
Artemísia, de repente, sentiu que poderia estar a ir longe demais.
Porque um tal estratagema seria capaz de os afastar
irremediavelmente. As relações entre as pessoas nem sempre
obedeciam à lógica...
Por
isso, continuou sentada, como se tivesse falta de ideias, falta de
planos, falta de sítios para onde ir... - muito longe do filme que
lhe deslizava perante os olhos.
Por
seu lado, Armando chegou à conclusão que o melhor seria pressionar
um pouco mais o seu braço, para ver se Artemísia reagia. E em que
sentido o faria. É que se, até ao momento, o contacto podia ser
encarado como fortuito, depois de um segundo momento de pressão mais
óbvia, a atitude que ela tomasse não deixaria margem a quaisquer
dúvidas. Então, os campos de manobra de cada um seriam claramente
mais reduzidos.
Armando
fez o que pensou. E a reacção de Artemísia foi aproveitar para
ajeitar o cabelo exactamente com a mão daquele braço, tendo-o feito
no instante preciso em que a pressão do braço de Armando aumentou,
o que o impediu de tirar qualquer conclusão, uma vez que o gesto
dela foi perfeitamente sincronizado com a decisão dele.
Depois,
Artemísia não voltou a colocar o braço na mesma posição,
deixando Armando manifestamente à deriva, sem saber o que fazer, se
recuar, ou se procurar aproximar-se mais do braço que ela mantinha
encolhido sobre a anca.
Armando
receava ir longe demais porque ela, de repente, podia dar um salto na
cadeira e acusá-lo de estar a assediá-la, chamando o responsável
pela sala e indo depois queixar-se à polícia. Havia gente para
tudo. E a verdade é que ele não sabia até que ponto Artemísia
seria capaz de ir.
Para
não estragar o serão, preferiu esperar por novo movimento dela, a
ver se os braços voltavam a tocar-se, a ver se recebia uma segunda
mensagem, a ver se o primeiro contacto não fora simples acaso.
Artemísia,
por seu turno, esperava apenas pelo instante em que voltaria a dar um
jeito no cabelo, pousando depois o braço de novo junto ao de
Armando, procedendo sempre com um ar de aparente naturalidade, para
que ele não tivesse hipóteses de descodificar a sua intenção. Ela
não queria que ele se precipitasse, nem que desistisse. Para o
conhecer, havia que mantê-lo na corda bamba pelo maior período de
tempo possível. Só assim poderia estudar as suas oscilações de
carácter, as suas hesitações intelectuais, as suas deambulações
comportamentais.
Ele
queria evitar que um eventual segundo momento de sincronia no
movimento dos braços lhe fosse favorável. Por isso, rodeou-se de
precauções e ficou a observar Artemísia pelo canto do olho.
Quando
viu que ela levava de novo a mão ao cabelo, aproveitou para se
endireitar no assento, ao mesmo tempo que punha as mãos entre as
pernas, evitando sair embaraçado da situação.
O
braço dela ficou imóvel sobre o apoio da cadeira, desprotegido e
abandonado. Ele sentiu que vencera, daquela vez. Por isso, não valia
a pena estar com grandes rodeios na próxima oportunidade.
Logo
a seguir, pôs o braço junto ao dela, tocando-lhe ao de leve, e
esperou pela borrasca, pelo grito, pela recusa!
Mas
ela não o rejeitou, embora também não tivesse deslocado o braço
um milímetro na sua direcção. Se tivesse feito esta última opção,
poderia dar a entender que o aceitava sem margem para dúvidas, que o
queria, que o desejava.
Na
prática, Armando continuava com poucas indicações, enquanto ela
achava que o facto de ele ter tirado as mãos de entre as pernas para
voltar a assentar o braço junto ao dela não acrescentava muito ao
que conhecia dele. Só podia tentar interpretar alguma coisa em
função do pouco tempo que ele demorara a reagir à sua aproximação.
No fundo, denotava uma insegurança típica.
Depois
dos movimentos de braços que se tocavam e afastavam, nenhum deles
voltou a ter dados novos e concretos sobre o outro. Ambos optaram
pela segurança das suas posições. Os bilhetes que haviam comprado
para a sessão determinavam com rigor os milímetros reservados ao
descanso dos braços de cada um.
Até
ao fim da película, os dois ignoraram-se ao lado um do outro.
Parecia que nada alguma vez podia vir a acontecer entre eles. Nem
contacto de braços, nem pensamentos secretos, nem gestos cautelosos
avançando no rumor das sombras. Davam a ideia de um casal que
subitamente se zangou sem motivo, não sendo qualquer deles capaz de
propor a reconciliação durante os próximos tempos. Os corpos
ficaram imóveis, por tanto tempo quanto a escuridão permitia. Só a
luz que rasgava a sala tremelicava metalicamente.
Mas
a sua zanga era só aparente. No fundo, Artemísia e Armando acabavam
de atingir um nível de entendimento ao alcance de poucos. Se não
tinham motivos imediatos para se aproximarem definitivamente, também
não os tinham para se afastarem, ou para se antagonizarem, de forma
irreversível. A serenidade que se estabelecera no espaço comum ao
braço de um e de outro era o sinal evidente de que tinham todo o
tempo do mundo para se conhecer.
2
Depois
do filme, Artemísia e Armando desceram as escadas pausadamente, por
entre os vultos acabrunhados que abandonavam a sala. Foram
atravessando o átrio com ar de quem media todas as hipóteses do
capítulo seguinte.
À
porta, ele perguntou se ela queria ir a qualquer sítio tomar alguma
coisa. Artemísia sorriu, ligeiramente, sem responder. Ele
interpretou a sua reacção de modo favorável.
Saíram
para a rua e puseram-se a andar no passeio, enquanto procuravam com
os olhos um táxi livre. De vez em quando, paravam, observavam a rua,
voltavam a dar uns passos e anulavam a marcha, de novo, até que
Artemísia deu a entender que estava a ficar demasiado tarde e que no
outro dia teria que trabalhar.
Ele
tentou demovê-la, dizendo que não demorariam, mas ela insistiu que
seria melhor deixarem a conversa para outra ocasião.
Não
sabendo ainda como conseguiria os seus intentos, ele ofereceu-se para
a levar a casa, com a convicção de que os próximos minutos seriam
decisivos.
Pouco
depois, surgiu um táxi desocupado. Entraram, sentaram-se e Armando a
pressou-se a dar a sua morada ao motorista.
Artemísia
reagiu prontamente. Disse que não, disse que era prematuro irem para
casa dele àquela hora da noite, disse que mal se conheciam, disse
que já era demasiado tarde, disse que no dia seguinte precisava de
se levantar cedo porque tinha um assunto importante a tratar - um
caso inadiável. Armando não se deixou comover, respondendo-lhe que
tomariam apenas uma bebida, ouviriam música e, depois, ele chamaria
outro táxi para a levar a casa.
Contudo,
ela não queria ceder sem mais nem menos. Até porque, vendo bem as
coisas, não conhecia Armando de parte alguma. Só sabia que ele era
amigo de Arnaldo que, por sua vez, era seu conhecido. A partir daí,
tudo o que pudesse acontecer era simples aventura.
-
É melhor tomarmos a bebida noutro dia - disse Artemísia. - É
melhor ouvirmos música da próxima vez, prefiro que me leves a casa,
prometo ser sempre tua amiga...
Mas
Armando via em cada palavra dela uma brecha para a realização do
desejo que acalentava no íntimo. Se Artemísia não quisesse mesmo
passar a noite com ele, daria ordens ao condutor para a levar a casa
ou, em última instância, saltaria do táxi em andamento. Não seria
a primeira a fazê-lo. Por isso, tudo indicava que Artemísia estaria
apenas a fazer-se difícil, para que ele não ficasse com a ideia de
que ela aceitava o primeiro que lhe aparecesse.
-
Não me importo de sair contigo um dia destes - insistia ela. -
Podemos jantar num bom restaurante, vamos tomar um copo, dar um
passeio à beira-mar. Hoje, é chato. Vê se percebes, nem sei quem
tu és e tu também nunca me viste mais branca...
Armando
achou que era importante responder-lhe de forma convicta:
-
Não se conhece ninguém num jantar, numa ida a um bar para tomar um
copo, num passeio à beira-mar para ver a caca das gaivotas... Nessas
alturas, as pessoas escondem-se atrás das palavras e das frases
feitas, montam esquemas de defesa, utilizam respostas arquitectadas.
No improviso, na espontaneidade, no inesperado é que está a
verdadeira sabedoria, o conhecimento autêntico da realidade.
Artemísia
procurou contrapor, dizendo que nem toda a gente era igual, que era
possível ser sincero e aberto, dando tempo ao tempo. Se havia
momentos em que as pessoas eram hipócritas e oportunistas, também
era verdade que havia ocasiões em que cada um podia mostrar a sua
verdadeira natureza, o seu verdadeiro modo de ser, a sua verdadeira
face.
-
O que podes sentir por mim é uma atracção superficial - argumentou
ela. - Seria muito mais saudável que esse sentimento pudesse ser
aprofundado com calma. A vida não acaba hoje. Afinal, que prazer é
que tens em estar com alguém contra a sua própria vontade?
Armando
respondeu-lhe que nenhum deles estava ali contra vontade. O que se
passava era que ela queria estar com ele noutro dia, enquanto ele
achava que não valia a pena estar a perder tempo com coisas que
tinham que acontecer mais cedo ou mais tarde.
Ela
respondeu que acelerar a realidade é sinal de que se tem medo da
morte. E disse mesmo que Armando não estava preparado para o que
pudesse acontecer-lhe de um momento para o outro, uma surpresa, uma
tragédia. Insistiu que ele não saberia enfrentar uma eventualidade
que escapasse ao seu espírito calculista. E foi mais longe:
-
No fundo, não queres estar comigo, mas com alguém que projectas em
mim. Estás a confundir-me com um dos teus fantasmas! Não se pode
desejar quem não se conhece. Só se especula, só se imagina... É
isso que estás a fazer comigo. Estás a desrespeitar-me, estás a
jogar-me num dos tabuleiros da tua matemática sem escrúpulos...
-
Não penses que me fazes desistir atirando-me à cara teorias
fabricadas em cima do joelho. A verdade é que não quero morrer sem
te conhecer. Imagina o que seria ser atropelado amanhã e não ter
chegado a saber quem tu és. Mas, se estivermos juntos e, depois, me
acontecer qualquer coisa, ao menos vou mais experiente e realizado!
-
Ao precipitares a vida dessa maneira estás a ir contra a ordem
natural das coisas. E acabas por não saborear nada verdadeiramente.
É preciso deixar que as situações façam sentido, é preciso dar
espaço às emoções, de contrário elas tornam-se simples esquemas
de sedução sem conteúdo...
Armando
defendeu-se dizendo que não acelerava coisa alguma na vida. Esta é
que já era acelerada por natureza. Toda a gente queria chegar em
primeiro lugar a tudo. O espírito desenfreado de concorrência é
que se tornava responsável pelas correrias que levavam à
destruição! E acrescentou que se ambos não aproveitassem aquela
oportunidade para estarem juntos, nada garantia que não surgissem
outras pessoas nos seus percursos, interpondo-se entre ambos e
fazendo com que nunca mais voltassem a encontrar-se.
-
Quem faz a concorrência somos nós - argumentou Artemísia. Ninguém
nos obriga a viver na vertigem. Pode andar todo o mundo a correr e eu
estar muito bem sentada no meu sítio, sem me preocupar com o que vou
comer no dia seguinte, ou com quem me vou encontrar dentro de
horas...
-
Se não formos competitivos, haverá sempre alguém que tomará o
nosso lugar! E quando alguém toma o nosso lugar quer dizer que
estamos mortos, que perdemos a corrida, que nos tornamos inúteis!
Para que servirá alguém que nem seja capaz de ocupar o seu espaço,
cedendo a outros as suas oportunidades? Devemos mostrar quem somos,
também, e o que valemos, ao nível da afectividade. Tenho a certeza
que este é o nosso dia, a nossa noite. Por mais que procures fugir,
não conseguirás contornar a realidade.
-
Mas o que é ser competitivo afectivamente? E o que é alguém tomar
o nosso lugar? No mundo, o único lugar possível de ter é o corpo -
e o seu movimento - como acontece agora neste táxi, sabendo que,
dentro de momentos, poderemos já estar noutro sítio, poderemos já
ter outros objectivos e desejos.
Ele
replicou que o lugar é a nossa passagem pelos acontecimentos e que
este é um processo que não se faz sem os outros. Sempre que envolva
os outros, tudo o que se faz é competição, comparação,
mensuração. Viver alheado disto é não intervir no rumo das
coisas, é não ter capacidade de decidir sobre a própria vida.
Quando se deixa que seja o tempo a mandar, cede-se o poder...
-
Se eu levasse a sério o que estás a dizer, deixava de falar contigo
já neste momento - respondeu Artemísia. - Na tua maneira de ver,
tudo se resume à competitividade, ao imediatismo das relações, e
aos teus olhos eu serei uma inútil e miserável se não encarar a
vida na mesma perspectiva.
Armando
defendeu-se dizendo que o pior jogo e o pior medo que se pode ter é
recusar a vida, adiando as coisas, o que levou Artemísia a revirar
os olhos, uma vez que o argumento não lhe deixava espaço para
flexibilizar a posição.
Mas
ao fim de uns breves instantes, ela voltou à carga, dizendo que não
havia qualquer mal em gerir de forma ponderada as situações, as
pessoas, as vivências, as ideias, as atracções. Uma pessoa podia
transmitir uma determinada ideia a dada altura e pouco depois
transmitir outra completamente diferente. Assim, nunca se conseguia
saber com exactidão a verdadeira natureza de tudo o que nos rodeava,
o verdadeiro alcance das situações, a verdadeira capacidade das
pessoas.
Para
Armando, no entanto, era precisamente por isso que não valia a pena
estar à espera de certezas, de definições, de conceitos seguros.
Porque a única realidade possível era a memória e a sucessão de
acontecimentos que desfilavam diante dos nossos olhos.
-
Tu fazes parte deste processo - defendeu Armando. - Encontrámo-nos
hoje e estamos aqui como se nos conhecêssemos há anos, discutindo
assuntos relacionados com as nossas formas de estar no mundo. Tens
uma maneira de ver e eu tenho outra, mas o importante é assumirmos
essa diferença de posturas com frontalidade e clareza. E se
partilharmos essa diferença, seremos mais ricos e mais confiantes,
interiormente.
-
O problema é que nada nos une, nem sequer as ideias... - disse ela.
- Não basta duas pessoas serem diferentes para terem uma relação
mais íntima e profunda. Se formos para a cama, hoje, se fizermos
amor, se fizermos sexo, se fizermos seja o que for, tenho a certeza
de que não continuaremos a ver-nos. A minha ideia é tentar
salvaguardar uma eventual boa relação no futuro. Mas estás
desesperado e queres estragar tudo na primeira oportunidade!
Armando
sentiu um secreto prazer ao aperceber-se que Artemísia fora ao ponto
de referir-se explicitamente a duas ou três palavras decisivas para
aquela noite: cama, amor, sexo! E procurou inverter os papéis que
ambos protagonizavam, alegando que ela estava a ser demasiado
drástica, uma vez que apostava no tudo ou nada. E passou ao papel de
moderador, dizendo:
-
Talvez seja bom duas pessoas com ideias diferentes procurarem níveis
de entendimento mais íntimos. Porque o corpo não engana. Mostra
sempre o que se passa com cada um. Nem sequer precisa de recorrer às
palavras para dar a entender o que as pessoas sentem e pensam...
E,
pela primeira vez, desde que se tinham metido no táxi, ela não
refilou, não argumentou, não pediu para ser levada a casa. Ficou-se
a observá-lo em silêncio, respirando fundo, medindo cada milímetro
de reflexão, percebendo a súbita viragem no discurso dele. Via-se
que procurava adivinhar os pensamentos de Armando e, ao mesmo tempo,
procurava avaliar todas as possíveis consequências, todos os
riscos, todos os cenários de uma resposta afirmativa.
E
enquanto ela não atava nem desatava, ele acrescentou, para quebrar o
gelo da dúvida:
-
A culpa é dos teus sapatos!
As
suas palavras abalaram a alma de Artemísia, superaram os últimos
receios, venceram as últimas hesitações. Armando havia tomado a
forma de outro corpo com o qual ela se identificava desde há muito.
Todavia,
passados uns breves segundos, o mundo deu ideia de voltar à forma
inicial, quando ela o olhou com ar repreensivo e disse que era melhor
ir cada um para sua casa.
Mas
Armando já tinha ganho alguma confiança na disputa, por isso, não
estava disposto a retroceder. Em circunstância alguma. O último
pedido de Artemísia, aliás, acabara por excitá-lo. Ao negar-se a
levá-la a casa, ele sentia-se como se estivesse a comandar um
rapto..., uma fuga..., um assalto.
E
como se já não pudesse esperar mais pelo teste definitivo à sua
posição de domínio naquela situação, pôs a mão sobre um dos
seios de Artemísia. Se ela aceitasse o seu gesto, a noite estaria
ganha. Se ela o rejeitasse, mesmo assim não desistiria..., porque a
rejeição também fazia parte das conquistas!
No
preciso momento em que a mão de Armando decidiu correr todos os
riscos, sentiu-se que duas cabeças tinham passado a rolar
desabridamente sobre um asfalto irracional e abrasador.
Ela
olhou-o, ainda, reprovando o seu gesto, embora com cara de quem só
podia aceitá-lo..., enquanto ele estudava já o passo que daria a
seguir.
Armando
percebeu que já não lhe escaparia a oportunidade de conhecer
Artemísia completamente naquela noite e Artemísia sentia que seria
impossível evitar as garras de Armando, desde o instante em que ele
falara nos sapatos dela. Não era capaz de o repelir. Os diálogos
tinham sido úteis, sobretudo para acabar com a hesitação interior
que precede todas as decisões imprevistas e ousadas.
Se
Artemísia escapasse naquela noite, depois daquele filme, uma vez
dentro daquele táxi, era mais do que sabido que Armando nunca mais a
veria em dias de sua vida. E se Armando não lhe caísse em cima, se
não a cercasse, se não a convencesse de forma inequívoca, sem
dúvida que ela nunca mais o enfrentaria.
Aquela
era a noite incontornável, a noite de todas as certezas e
evidências, a noite absoluta dos gestos nos quais se confrontam as
maiores contradições.
Artemísia
e Armando souberam-no a partir do momento em que ele colocou a mão
no seio dela e ela nada fez para o impedir.
Ela
sentiu-se invadida por uma quantidade de lagartixas irrequietas que
avançavam sobre o seu corpo, os seus corpos, a sua coxa, as suas
coxas, fazendo-a escorregar no assento do automóvel sob as luzes de
Lisboa em movimento num barco desancorado nas ondas bravas do alto
mar que fica muito para lá do Tejo e das suas sombras. E já só via
fogo à sua frente, já só via remoinhos de vento no céu estrelado
dos edifícios que desabavam sobre a sua cabeça, já só via
serpentes de música transbordando no reflexo das vidraças que lhe
atravessavam a sensibilidade.
-
Espera..., espera... - dizia ela, receando que Armando a despisse
completamente dentro do táxi.
Mas
ele estava imparável..., não ouvia o que ela dizia, inebriado pelo
roncar do motor nas curvas da cidade, indiferente a tudo o que
estivesse para além do corpo de Artemísia, que vergava,
progressivamente, visivelmente, disciplinadamente, ante o seu avanço.
-
Tem calma..., tem calma... - repetia Artemísia, asfixiada, inundada
de vento em chamas, afundada na loucura sem rédeas, preocupada com a
possibilidade de o motorista se aperceber de alguma coisa e chamar a
polícia, ou desviar-se da rota combinada, levando-os para um
descampado e exigindo participar equitativamente no acto. Já tinha
acontecido em outras alturas, com outras pessoas, em outras
cidades...
Por
isso, ela pôs as mãos no pescoço de Armando e obrigou-o a
controlar-se, dizendo que sim com a cabeça, mas que só em casa
dele, que só dali a mais uns momentos, que só em lugar seguro, que
só se ele tivesse juízo...
Armando
percebeu a mensagem e reagiu, recuou, amansou, endireitou a camisa e
o cinto, ajeitou as calças entre as pernas numa das curvas do táxi,
e olhou em frente para a cabeça do condutor, não deixando de
observar Artemísia, porém, com o olho que lhe tinha ficado suspenso
na parte esquerda da cabeça...
Entretanto,
para não a perder, ou para evitar que ela se precipitasse para fora
do carro quando este abrandasse ou parasse num semáforo, Armando
deu-lhe a mão, apertando-lhe os dedos, afagando-lhe o pulso,
enquanto ela libertava uns suspiros que se confundiam com o ranger
dos assentos ao ritmo dos solavancos sobre o pavimento irregular.
3
Quando
chegaram à porta do prédio em que Armando vivia, ele pagou o táxi,
procurou a chave no bolso, puseram-se ambos à espera do elevador,
entraram, subiram para o sétimo andar, ele abriu a porta do
apartamento, acendeu a luz da entrada, depois a da sala de estar e
disse para ela estar à vontade, indicando-lhe o sofá...
Logo
a seguir, Armando desapareceu para outra divisão da casa, deixando
Artemísia sozinha e ainda atarantada com o que lhe acontecera no
táxi.
Enquanto
ele não voltava, ela pôs-se a pensar no que fizera e arrependeu-se
de ter ido tão longe. Sentia que Armando tinha capacidade para a
atrair, mas estar ali numa casa completamente desconhecida, àquela
hora da noite, com alguém que nunca vira antes, tinha a sua dose de
risco.
E
se Armando fosse um psicopata, um assassino, um violador?! E se, por
outro lado, não fosse nada disto? Como saber a verdade, afinal? Para
quem não tinha dados sobre a situação (e sobre a pessoa), em que
poderia basear-se para decidir correctamente?
Pressentia
que dificilmente sairia dali igual ao que entrara. O facto de Arnaldo
conhecer Armando não queria dizer grande coisa, até porque ambos
nem tinham demonstrado grande intimidade na altura em que se
encontraram no átrio do cinema. Arnaldo podia ter conhecido Armando
num qualquer encontro fugaz de café e pouco mais.
Artemísia
sentiu um arrepio na coluna ao pensar no que se metera. Agora, era de
certa maneira tarde para recuar. Se desaparecesse pela porta fora,
sem mais nem menos, corria o risco de cometer uma injustiça
irreparável, além de se prejudicar a si própria, porque, no fim de
contas, talvez Armando fosse um homem interessante e ela estivesse
ali apenas a exagerar a sua visão das coisas.
De
qualquer maneira, o que se passara no táxi já lhe dava uma ideia do
que a esperava.
Entretanto,
ele desaparecera da sua vista e ainda não regressara. Estaria a
preparar alguma? Artemísia voltou a recear pela sua segurança...
Mas,
nesse preciso instante, ouviu-se a voz de Armando noutra divisão da
casa a perguntar se ela queria tomar alguma coisa. Parecia que ele
tinha adivinhado o que ela estava a pensar.
Artemísia
respondeu que talvez mais tarde...
Quase
logo a seguir, Armando apareceu na sala com ar de muito atarefado e
disse que não se demorava. Apontou para a aparelhagem de som e
sugeriu que ela escolhesse uma música...
Para
Artemísia, era estranho que ele não tivesse pressa para continuar o
que já havia começado. Seria Armando uma daquelas pessoas que
preferem fazer amor em lugares públicos, como os táxis?...
Ter-se-ia inibido perante as facilidades da aproximação entre os
dois? Haveria algum outro motivo particular que ela desconhecesse?
Artemísia
pensou que podia viver mais alguém na casa, uma hipótese que não
tinha considerado desde que ali entrara. Talvez um familiar, um irmão
ou uma avó..., sabia lá as relações de parentesco que Armando
podia ter!
Levantou-se
do sofá e pôs-se a caminhar pela sala de estar, aparentemente
descontraída, olhando para os vários objectos e quadros nas paredes
(todos impessoais, pouco esclarecedores, com mensagens inalcançáveis
a um primeiro olhar), a ver se descobria alguma coisa sobre o homem
em casa de quem se encontrava.
Depois,
foi até à varanda e ficou-se a mirar a noite por uns momentos, os
prédios em frente, as janelas sem luz, o pouco trânsito na rua...
A
certa altura, ouviu puxar o autoclismo e acelerou o passo para o
sofá, voltando a sentar-se, enquanto Armando regressava para junto
dela, com as mãos ainda húmidas do sabonete, pedindo desculpa pela
ausência.
-
Não estava a sentir-me muito bem - explicou ele. - Deve ter sido
alguma coisa que comi e que me caiu mal...
-
Queres que te faça um chá? - perguntou Artemísia, com imprevista
familiaridade, como se já conhecesse os cantos à casa.
Mas
Armando replicou que não era preciso, que preferia tomar um uísque.
E sentou-se junto dela, com o copo na mão, de pernas estendidas para
a frente, ao mesmo tempo que lhe punha o braço por cima do colo, de
forma natural e confiante.
Depois
da maneira como ambos se haviam comportado no táxi ela não estava
em condições de o repelir. E se viera até sua casa, embora
apresentando argumentos discordantes, por alguma razão tinha sido.
Além de tudo, o melhor era manter-se cautelosa, pois alguns dos seus
receios ainda se mantinham.
-
Podias beber um uísque, também - disse ele. - Ficava-te a matar com
esses sapatos!
Ela
riu e disse que não via a relação entre um copo de uísque e uns
sapatos... A seguir, para ver como ele reagia, voltou à carga,
dizendo que talvez fosse melhor ir andando, porque já era bastante
tarde.
Mas
ele deu um salto no sofá e respondeu que nem pensar nisso, até
porque só agora os dois estavam ali sentados ao lado um do outro.
Pediu-lhe desculpa pela demora que tivera na casa de banho e, como se
para a compensar, foi mostrar-lhe o apartamento - a cozinha, o quarto
de cama...
Depois
do uísque, Armando ficou mais entusiasmado e tentou, de súbito,
abrir a camisa de Artemísia. Mas ela protegeu-se instintivamente,
como se o tempo que havia passado entre a viagem de táxi e o
apartamento dele fosse suficiente para lhe esfriar o corpo.
Ele
hesitou, reflectiu sobre as consequências de avançar ou recuar, e
pôs-se a rir para o copo de uísque que tinha na mão, sentindo que
a recusa dela era um convite a qualquer coisa, qualquer aproximação,
qualquer risco, qualquer voo no abismo.
Enquanto
ria, como se ela não estivesse ali mesmo a seu lado, Armando teve a
nítida impressão de percorrer vertiginosamente a noite escura por
dentro de um crocodilo com a boca aberta para as nuvens. E via-se às
cavalitas de Artemísia, atravessando os tempos em que não soubera
de si nem do mundo. Parecia que a conhecia desde sempre, desde os
primórdios da vida na Terra. Só faltava convidá-la para dar a
dentada na maçã! Tudo isto enquanto as luzes rodopiavam por entre
as ondulações dos prédios que se amontoavam em cima uns dos outros
até perder de vista.
Ela
parecia surpreendida por vê-lo assim ausente e disse que também
queria tomar qualquer coisa, mas ele não a ouviu, como se tivesse
feito as malas para outro país, de súbito, embora continuasse ali
presente, palpável, definido, na sombra dos movimentos breves que a
noite desenhava.
-
Podias dormir cá - sugeriu ele, de forma brusca, sabendo que ela não
estaria à espera de semelhante proposta.
Mas,
para sua surpresa, Artemísia não respondeu. E o silêncio cúmplice
parece ter decidido tudo o que aconteceu dali em diante.
Artemísia
preferiu não fugir ao momento que vivia. Se chegara até ali, havia
de sobreviver ao resto. Vendo bem as coisas, Armando não tinha nada
o aspecto de um psicopata ou de um violador. Caso contrário, já
teria feito alguma coisa para a cortar aos pedaços, já a teria
asfixiado com uma peça de roupa, já se teria munido de uma qualquer
faca ou lâmina que faria deslizar sobre a pele arrepiada do pescoço.
Era assim nos filmes, na realidade das noites em que não é possível
fugir para onde quer que seja, só estar ali de frente para um rosto,
para um texto, para uma luz.
-
Dormes cá esta noite!, dormes cá esta noite! - pôs-se ele de
súbito a gritar pela casa fora, marchando, sem se preocupar com o
barulho - taratchim, taratchim - fazia ele com a boca, batendo
palmas, rindo e cantando melodias desprovidas de nexo.
Entretanto,
ela tinha coberto o rosto com as mãos, dando a ideia de que tinha
acabado de consentir num crime, num disparate, numa asneira
irreparável. E quando encontrou uma brecha para se fazer ouvir,
exclamou:
-
Mas eu não disse que concordava em dormir cá esta noite...
-
Não concordaste, nem deixaste de concordar - replicou ele. - O teu
silêncio foi revelador. Aliás, nem esperei pela tua resposta porque
até defendes que as palavras são uma perda de tempo!
-
Estás a aproveitar-te de uma ideia que referi há pouco e que não
tem nada a ver com o que estamos a falar agora - respondeu ela,
procurando transmitir um ar de firmeza.
-
Só nos conhecemos há algumas horas e já queres negar o que
disseste?! Deixa-te de esquemas e rodeios porque não tens outro
remédio senão dormir cá em casa esta noite...
A
expressão "não tens outro remédio" deixou-a ligeiramente
apreensiva. O melhor seria nem tentar saber o que se esconderia por
detrás de semelhante frase, fingindo que não percebia onde ele
queria chegar. E o certo era que não tinha exactamente a certeza de
coisa alguma.
-
Como vês, estamos feitos um para o outro! - disse ele à
queima-roupa. – Apesar desses sapatos...
Ela
teve foi sacudida por um leve estremecimento, como se ele estivesse a
ir longe demais nas suas convicções. Armando queria estar sempre um
passo à frente da realidade em que assentava os pés. Era a sua
forma de tentar controlar o rumo dos acontecimentos, condicionando-os
com as suas palavras. Esta atitude incomodava-a, abalava-a, porque
Artemísia sabia que ele podia interferir com a sua vida, pelo menos
a um nível imediato. E isso tinha os seus perigos. Porém, nada
havia até ao momento que fosse suficiente para a fazer voltar a
casa. Porque ele tinha qualquer coisa que a desarmava, despia,
desassossegava, deixava perplexa, inquietava e acalmava, ao mesmo
tempo. O comportamento desconcertante de Armando, no fundo, ia
urdindo uma teia pela qual ela se deixava dominar, conquistar,
vencer, instante a instante, sem opor resistência, devorada pela
situação, engolida pelo imprevisto.
-
Vou abrir a cama, para ficarmos mais à vontade... - disse ele,
enquanto fazia um gesto que a convidava a levantar-se por breves
segundos.
E
antes que Artemísia tivesse tempo de dizer alguma coisa, ele puxou
com destreza as almofadas do sofá, deixando-se cair sobre o colchão
que se abriu num golpe de mágica, ao mesmo tempo que a puxava pela
cintura, fazendo-a deitar-se a seu lado.
Ela
reagiu, prontamente, sentou-se no sofá agora estendido no chão e
protegeu com os joelhos o rosto afogueado, não sabendo se havia de
rir ou de chorar.
Entretanto,
Armando descalçou-se e apagou o candeeiro, deixando a sala
mergulhada na claridade azul da manhã. Depois, assentou a cabeça
sobre os sapatos de Artemísia e pôs-se a olhar para o tecto, sem
dizer nada.
Ela
deu voltas à cabeça, mas não conseguiu articular uma resposta que
a esclarecesse perante si mesma. A cama estava aberta para tudo o que
viria a seguir. E Artemísia encontrava-se deitada sobre os seus
lençóis amarrotados. Uma ovelha que aceita ser degolada sem motivo.
Embora
Armando continuasse a olhar para o nada que pairava junto às
nebulosas estreladas poucos metros acima das suas pestanas, era
evidente que fazia contas à situação, através de cálculos sobre
vantagens e prejuízos, recuos e avanços, proximidades e distâncias,
uniões e separações. Procurava não perder o controlo dos
acontecimentos.
De
costas para Artemísia, com a cabeça reclinada sobre os seus sapatos
(os sapatos que haviam chamado a sua atenção desde o primeiro
momento em que conhecera Artemísia), ele tentava identificar a
mulher do seu passado que ela lhe fazia lembrar. Alguém próximo,
alguém de família, uma tia, uma prima, uma parente da mãe chegada
do estrangeiro. Ou então Artemísia fazia-lhe lembrar alguma mulher
que conhecera ocasionalmente na rua, na sala de espera do dentista,
no consultório de um advogado. Mas também podia ser alguém que
nunca encontrara e que, agora, simplesmente, Artemísia tinha a arte
de lhe dar a conhecer, através da sua própria expressão, do seu
olhar irrequieto de coruja que não descansa enquanto não desce às
profundezas da noite.
De
certa maneira, ela parecia à altura de lhe dar respostas decisivas
sobre uma quantidade de coisas. Porque não era bonita nem feia, não
era magra nem gorda, não era meiga nem agressiva, não era escura
nem clara, não era brilhante nem tonta!
É
certo que os seus sapatos tinham qualquer coisa que lhe faltava
desvendar, mas dentro de pouco esclareceria todas as dúvidas. Mais
tarde ou mais cedo, ela teria que descalçá-los e então ele poderia
verificar uma quantidade de coisas. Aliás, só por delicadeza ainda
não lhe dissera para os tirar.
No
fundo, talvez o problema não estivesse nos sapatos de Artemísia,
mas sim nos pés. Armando não se admiraria se ela não estivesse à
vontade com qualquer coisa nos seus pés. Um dedo maior do que o
normal, uma unha menos elegante, uma planta do pé mais achatada.
Sabia-se lá. Há pessoas que não gostam do seu nariz, da sua boca,
das suas mãos. Artemísia podia muito bem não gostar dos seus pés.
E por isso os protegia dentro dos sapatos. Daqueles sapatos.
4
Armando
tinha uma fixação por sapatos. Dizia mesmo ser capaz de conhecer as
pessoas consoante a sua cor, forma, tamanho, altura do salto, brilho,
material, biqueira (mais larga ou mais fina)... - os sapatos eram
quase um documento de identificação, um passaporte, um carimbo
através do qual construía a sua primeira ideia acerca de quem os
usava, fosse mulher ou homem.
Em
ocasiões anteriores, chegara mesmo a terminar algumas relações só
porque não era capaz de gostar dos sapatos delas. E em outros casos,
foi ao ponto de evitar conhecer melhor uma pessoa por achar que não
valia a pena, tal a aparência dos seus sapatos. Se estivessem
excessivamente cuidados, a situação podia tornar-se problemática.
E se fosse o contrário, também...
Com
os sapatos de Artemísia, a dificuldade era diferente. É que,
olhando-os bem, nada diziam. Armando não percebia o que estaria por
detrás da sua simplicidade. Se dificuldades económicas, se
convicção, se temperamento, se opção. Eram demasiado impessoais.
Pareciam mesmo ter sido dados por alguém.
Só
que Artemísia não tinha o ar de quem fosse necessitada a esse
nível. Sapatos castanhos, de pele vulgar, totalmente lisos, salto
médio, nem largos nem finos à frente, eram para ele um autêntico
quebra-cabeças. Como se ela não viesse de parte alguma, ou vivesse
desprovida dos bens mais elementares, acabada de sair de um convento,
sem possuir o que quer que fosse, nem o próprio corpo!
Armando
sentiu que o corpo de Artemísia não era de Artemísia, mas sim de
outra, indomável, fugidio, inalcançável. Por isso, também, a
vulgaridade dos sapatos...
Ele
estava de olho no tecto, com a cabeça sobre os sapatos dela, para
não os ver, tentando encarar a situação de outro ângulo.
A
personalidade de Artemísia estava ali, a seu lado na cama, ao passo
que o corpo parecia estar em toda a parte. Um corpo de todos, para
muitos, exclusivo, dedicado, pensativo, impossível, concreto, exacto
e obscuro num tempo sem compreensão. Um corpo que não se conhece é
sempre de todos...
Artemísia
podia ter vindo de muitos países ao mesmo tempo, podia ter navegado
por muitos mares, podia ter percorrido muitos caminhos e, no fim de
tudo, podia ter interrompido o voo pousando na casa de Armando, na
sua cama, nos seus lençóis, para se reencontrar, para se redefinir,
para se recomeçar. E então, ela seria um corpo novo, cheio de
outros num só.
Armando
não conhecia bem o corpo nem o espírito de Artemísia. Por isso, só
podia especular, pensar, tentar adivinhar... E, ao fazê-lo,
sentia-se mais e mais atraído por ela, pela sua impenetrabilidade,
pelo seu enigma.
Quase
inconscientemente, ele apertou-lhe os tornozelos e ela respondeu
trazendo as suas mãos ao encontro das dele, agarrando-lhe os pulsos
de forma extremamente suave, como se os seus dedos fossem lâminas
prontas a cortar-lhe as veias.
Armando
deu uma volta sobre si mesmo, para se libertar e perguntou:
-
Onde compraste os teus sapatos?
Artemísia
não estava à espera da pergunta, mas replicou com inusitado
sangue-frio:
-
Sempre gostava de saber por que razão não hás-de deixar os meus
sapatos em paz!
-
Não consigo perceber-te através deles...
-
Só me podes perceber através da alma, do coração, da
sensibilidade, nunca através dos sapatos - argumentou ela.
-
A melhor forma de conhecer uma pessoa é através de um aspecto
inesperado, de uma característica imprevista, porque só assim
podemos apanhá-la desprevenida e só apanhando-a desprevenida
conseguiremos chegar a algum lado...
-
Mas com os meus sapatos só eu posso chegar a algum lado! - disse ela
com ar visivelmente divertido.
-
Estás a querer brincar com uma coisa séria - respondeu ele,
ligeiramente contrariado.
-
A questão não está nos meus sapatos! Falas neles porque não és
capaz de colocar os assuntos com frontalidade e coragem. Quando nos
conhecemos, no cinema, fizeste logo um comentário despropositado...
-
É que os teus sapatos parecem vazios, parecem de outra pessoa...
-
Não precisas de tantos rodeios para me dizer que não devo estar de
sapatos no teu sofá-cama!
-
Até acho que ficas mais atraente com os sapatos nos pés. Não os
tires. Nunca me aconteceu estar na cama com uma mulher de sapatos.
Pensando bem, acho melhor assim. Inicialmente, cheguei a pensar que
eles esconderiam alguma coisa, mas acho que não.
-
Podes estar descansado porque não se trata de um estratagema para te
fazer cair nas minhas garras...
Ela
estendeu-se mais na cama, enquanto dobrava as pernas para trás, como
se se preparasse para tirar os sapatos, mas Armando apressou-se a
impedi-la, segurando-lhe ambos os pés com tanta convicção que
parecia mesmo disposto a amarrá-los, só para os ter exactamente
como os vira pela primeira vez.
O
movimento dos corpos deslizou sobre o colchão e em poucos segundos
ambos se encontravam um ao lado do outro, um com o outro, um sobre o
outro, um contra o outro, um pelo outro..., sem palavras, só com
sombras ondulando na luz delicada das paredes, suspiros fundos,
murmúrios, sílabas apertadas entredentes! Sem terem tirado a roupa,
estavam nus, com as dobras dos tecidos prolongando os músculos, as
peles, os movimentos em que se anulavam, desafiando as inibições.
-
Despe-te! - disse ele.
Mas
ela não ouviu, agarrada que estava aos seus colarinhos pronta a
esbofeteá-lo a qualquer instante.
-
Despe-me!! – insistiu Armando, embora receasse ficar à mercê de
uma qualquer fúria assassina. Por qualquer razão, Artemísia
trazia-lhe à memória facas e golpadas imprevistas nas partes mais
fundas e desprotegidas do corpo. Mas isso fazia com que ele a
desejasse ainda mais completamente, o que o obrigava a arriscar cada
vez mais.
-
Despe-me da cabeça aos pés e desfaz-me em tiras - suplicou ele,
desvairado, sem tino, pronto a dar a vida por um segundo de hesitação
sobre o abismo.
Artemísia,
porém, estava pouco interessada nos seus delírios. E puxava-o para
o si com todas as forças, sacudia-o, dobrava-o sobre a cama
desarrumada, sentava-se sobre ele e ameaçava rasgá-lo de alto a
baixo, destruindo-lhe a roupa ou a pele, não fazia diferença, o
importante era feri-lo de morte antes que ele o fizesse a ela.
Os
corpos de Artemísia e de Armando ardiam na noite descontrolada. Ela
soprava por entre os botões da camisa dele, soprava e voltava a
soprar querendo encher-lhe a casa de labaredas e quanto mais ela
soprava mais ele sentia cair aos pedaços o muro que tinha diante dos
olhos.
E
punha-se aos saltos na cama, aos guinchos e às gargalhadas,
completamente transviado, convidando-a a agarrá-lo, a prendê-lo, a
imobilizá-lo, a segui-lo de rastos pela casa fora.
Armando
fugiu e ela foi atrás dele, agarrou-o, caíram os dois no meio do
soalho, engalfinhando-se numa luta de cócegas, apalpões,
escapadelas e trejeitos.
Mas
ele voltou a libertar-se e precipitou-se para a cozinha, onde se
deixou cair ao comprido sobre o chão, de braços abertos, ofegando
até não poder mais, enquanto lhe pedia tréguas.
Ela
avançou sobre ele, imobilizou-o com as mãos febris e arrancou-lhe
dois botões da camisa com os dentes!
Armando
ficou hirto, deitado, a olhar para ela, tentando compreender até
onde poderia chegar, se pretendia dominá-lo, ou apenas desvendar
outras dimensões da sua forma de ser.
-
Sempre é uma maneira de te conhecer melhor - disse ela, de forma
intempestiva. - Vou sugar-te até aos ossos.
-
Projectando a nossa relação para o futuro, tenho a impressão de
que poderás vir a matar-me! - replicou ele. – Receio qualquer
coisa do género.
-
É estranho que penses assim - respondeu Artemísia. Eu nunca seria
capaz de te tirar alguma coisa, um disco, um papel, um talher, muito
menos a vida!
Ela
estava sentada em cima dele, ainda com as mãos prendendo-lhe os
pulsos, com ar de quem se dispunha a arrancar-lhe o resto dos botões
com os dentes aguçados e cortantes.
-
Se eu alguma vez tivesse que te matar seria hoje e não daqui a uns
anos – esclareceu ela. Mas já tenho outros planos para essa
altura...
-
Se calhar, vais ter que revê-los, porque de hoje em diante vai ser
diferente.
-
Existes agora, conheci-te hoje, estás na minha frente..., mas não
sei se conseguirás sobreviver. Além disso, pode ser que o meu rumo
não te interesse. Ponho sérias hipóteses de deixar Lisboa para
experimentar outras saídas num país diferente.
Enquanto
falava, Artemísia deixou-se descair sobre uma das pernas, aliviando
o peso sobre o corpo de Armando e libertando-lhe os pulsos.
Logo
que se sentiu menos condicionado, ele ergueu o tronco, empurrou-a
para trás e inverteu a situação, imobilizando-a sobre os mosaicos
duros do chão. O calor dela contrastava com o frio apertado contra
as suas costas, o que o tornava cada vez mais desassossegado,
irrequieto, tenso. À medida que se controlava, sentia os braços
finos dela perdidos entre as suas mãos, cada vez mais livres, mais
descomprometidos, mais ousados.
Artemísia
estava agora completamente rendida sob a sua sombra, deitada no chão
da cozinha como uma ave degolada, à beira de uma luz estridente e
submissa, restando-lhe apenas a segurança dos sapatos, que
continuava a não descalçar.
-
Quem vai decidir se eu farei parte do teu futuro, ou não, somos nós
os dois - disse ele, a dada altura, deixando claro que tinha uma
posição a defender naquela noite.
-
Quando fiz os meus planos para o futuro, não te conhecia, não sabia
quem eras, não estava ao corrente da tua existência. Não me podes
levar a mal por isso... E não sei se, agora, conseguirás entrar por
alguma brecha, alguma nesga distraída, alguma janela entreaberta.
-
A nesga foi esta noite...
-
Esta noite ainda não foi nada de especial...
-
Esta noite vejo-te estendida de braços abertos, à espera do momento
em que nos conheceremos melhor um ao outro.
-
Mas o conhecimento não tem um momento exacto ou um instante
determinado. O conhecimento precisa de tempo, precisa de experiências
em conjunto, precisa de reflexão, precisa de tanta coisa...
-
Há formas instantâneas de conhecer que equivalem a muitos anos de
convívio. Para que achas que serve a perspicácia? Tem a ver com o
que aconteceu connosco esta noite. Alguma vez te sentiste tão à
vontade num primeiro encontro?
-
O que facilitou a nossa aproximação foi a maneira como me
provocaste por causa dos sapatos. Mas esse teu jeito para quebrar
formalismos não significa que tenhas mais facilidade em conhecer as
pessoas. No fundo, provocas as mulheres só para encobrires a tua
timidez!
Armando
fixou-a nos olhos e respondeu sem pensar, para que ela não
percebesse até que ponto o seu diagnóstico era correcto:
-
Ser espontâneo e directo não tem nada a ver com provocar. Não
gosto de artificialismos e rodeios. Mas não sei que mal há em ser
tímido...
-
Não há mal nenhum, escusas de acusar o toque...
Armando
pôs-se a empurrá-la sobre o chão, de costas, fazendo-a arrastar-se
e deslizar ao longo do soalho, com a ajuda dos pés e das ancas,
enquanto ele a acompanhava, avançando de joelhos, controlando-a com
o olhar para ela não desaparecer na curva da porta mais próxima,
mas conseguindo estar sempre mais presente, mais próxima, mais
palpável.
Quando
chegaram junto do sofá-cama, desataram a arrancar as roupas um ao
outro, enquanto se engalfinhavam, agarravam, colavam, prendiam,
sugavam, esqueciam, tresloucavam, embraveciam, ao mesmo tempo que se
entregavam, completamente esquecidos de cuidados e convenções.
Despidos,
desfeitos entre os lençóis, diluídos na obscuridade do quarto, com
todos os movimentos preenchidos e libertos, só os sapatos de
Artemísia saltavam à vista, no remoinho de gestos e contradições
que enchia a noite.
No
fim das liberdades, na linha exacta em que as horas se desintegram em
minutos, segundos e instantes cada vez mais ínfimos, Artemísia e
Armando desapareceram, fazendo tudo voltar ao início, sem nunca
acabar, com a respiração sempre suspensa, uma espécie de cântico
que não passa dos primeiros acordes, um desacorrentamento, um
deslize pelos abismos com as nuvens aos pés, um delírio de espuma
com fios de suor rente às superfícies antes de tudo acontecer e
mesmo depois era antes, sempre antes, cada vez mais antes, mais cedo,
sempre mais perto do ponto em que tudo era concebido...
5
Quando
acabaram de fazer sexo, Artemísia e Armando não sabiam se estavam
vivos ou mortos. Encontravam-se estendidos ao lado um do outro,
completamente nus sobre a cama desfeita, sem mexer um dedo, uma
pálpebra, um músculo. Quase nem respiravam.
Por
um lado, estavam vivos, porque tinham consciência do que se passava
à sua volta, mas, por outro, pareciam mortos, porque não reagiam a
nada.
No
quarto, o silêncio fazia lembrar os cemitérios quando não há
vento a embalar os ciprestes. Só a certa altura, e por uns breves
instantes, se ouviu alguém arrastar um móvel no andar inferior.
Aquele ligeiro ruído, quase irreal, mas concreto, era o que restara
no edifício depois de quase todos os residentes terem ido de férias.
Podia ser mesmo irreal. Ou um eco com dias de atraso...
Estava-se
em Julho, mês das noites longas, quentes e sem nexo. Ninguém
acudiria para salvar duas almas perdidas algures no sétimo andar de
um prédio em Lisboa.
Artemísia
pensou deslocar uma das mãos sobre o lençol, para ter a certeza de
que estava mesmo ali, de que tinha os ossos no sítio, mas desistiu,
pensando que talvez fosse melhor não despertar o corpo de Armando.
Cada milésimo de segundo que passava era um prazer eterno.
Quando
ambos deram por si, estavam lado a lado, como dois cadáveres -
palpitantes de vida - ainda perplexos com o que lhes acontecera.
Não
falavam. Tinham as gargantas secas de humidade, os olhos fechados
(como se abertos na direcção de uma parede branca), as forças
inutilizadas sobre o colchão.
Armando
nem sabia em que direcção se encontravam as suas pernas e braços.
Os membros tinham deixado de obedecer ao comando do cérebro.
Olhava
para cima e tinha a impressão de ver Deus colado no tecto do quarto.
Deus devia ser aquele reflexo imenso e suave sob o qual se abrigam os
corpos depois do sexo. Deus era uma espécie de visão interior
projectada para além do eco que fazem os pensamentos antes de alguém
os ter ordenado. Vendo bem as coisas, Deus era palpável na sua
brancura de cal, era alcançável nos seus contornos, era
compreensível nos seus juízos primários. Deus era o espaço, o
tempo e a ideia por dentro do qual o prazer era a soma de todas as
sensações puras. Deus não tinha limites. E alimentava os sonhos de
tanta gente desde o princípio de todas as coisas.
Por
seu lado, Artemísia olhava e olhava, mas não via Deus, nem sombra
de espíritos ou de asas voando sobre a paisagem de Lisboa. Nem fazia
preces que a pudessem conduzir a uma dimensão superior.
O
seu paraíso era o quarto onde jazia ao pé de Armando, era aquele
vale de pó antigo numa indefinição de contornos que fazia com que
ela se esquecesse de si mesma.
Para
Artemísia, Deus equivalia ao passado. Não falar dele, nem
reconhecê-lo, era tão importante como o prazer no mais alto grau de
todos os músculos. Para Artemísia, Deus era a sua própria
ausência, dúvida e vazio. Deus era a negação do que existia. Como
tal, não continha dor, só prazer, mais e mais prazer, tanto quanto
podia conter uma ideia absoluta.
Ela
fazia contas às pulsações do ventre. Ficava para ali a segui-las
por tempos sem fim. Continuava a sentir dentro de si um furacão que
destrói tudo à passagem. Estava destelhada, desabrigada,
desamparada, pela noite fora, sobre o cavalo do tempo na paisagem
febril dos lençóis. O seu Deus era um animal sem regras disposto a
todas as libertações.
Artemísia
pressentia qualquer coisa, pressentia que a sua vida podia sofrer uma
grande mudança. Esse pressentimento despertava-lhe medo, fazendo com
que desejasse adiar o momento exacto em que teria que levantar-se da
cama e voltar para casa.
O
ideal seria esquecer o tempo de uma vez por todas. Já esquecera o
passado. Faltava resolver o presente e o resto.
À
sua direita, na cama, estava o homem que conhecera naquela noite.
Embora pouco mais soubesse do que o seu nome, ele tornara-se parte
dela, penetrara-a, atravessara-a, conquistara-a. Agora, já não via
as coisas da mesma forma.
Artemísia
estava como se tudo tivesse que recomeçar dentro dela. Desde a forma
de pentear, até à posição dos dedos na maneira de segurar a
chávena do café, ou mesmo a cor da sua pele - tudo estava em
questão. O tamanho das pernas e das mãos, o volume dos braços, a
largura da anca...
O
corpo era o seu Deus, porque fora através do corpo que atingira o
prazer máximo e o prazer máximo só podia ser comparado ao Deus que
vence todos os medos.
Assim,
ela não precisava de acreditar nem de deixar de acreditar num ente
superior que explicava (ou não) o sentido da vida. Porque não se
acredita em algo que nos pertence.
Artemísia
tinha um Deus que era o seu corpo e nada mais. E o seu corpo, ou o
seu Deus, era um vulcão a rebentar de temperaturas, de formas e
conteúdos, de apetites.
Armando
estava quase morto, mas debatia-se com a ideia de querer mais e mais,
apesar de já lhe ter acontecido tudo. Por isso, enquanto desejava
uma coisa, concluía também que não valia a pena desejar o
impossível.
Voltar
ao princípio seria inglório. Estava certo de que a experiência
daquela noite não se repetiria. Nunca mais encontraria Artemísia em
circunstâncias semelhantes, mesmo que a partir daquele momento
passassem a viver juntos.
Se
o fizesem, o dia a dia havia de tornar-se um aborrecimento, matando a
sedução, o brilho dos corpos, a originalidade dos sentimentos...
Por mais que se esforçassem, a vida a dois faria pouco sentido.
Porque era um exagero ter dois seres humanos sempre em cima um do
outro, sem nunca se encontrarem, sem nunca se perceberem, sem nunca
se amarem.
Para
Armando, só a liberdade afectiva consentia que duas pessoas pudessem
entregar-se despidas de constrangimentos. Por isso, tinha chegado a
um beco sem saída. Se voltasse a estar com Artemísia não seria
capaz de repetir a experiência e se não voltasse a encontrar-se com
ela também não seria capaz de repetir o prazer que dispensa
convenções e que se desfaz nos limites da dor insuportável.
"Absoluto...,
quem fez o absoluto?...", murmurava Armando para si mesmo, quase
em delírio. "Não pode ser..., não tem lógica...". As
palavras tropeçavam dentro dele, deixando-lhe a cabeça feita numa
caldeira de vapores. "Mas o absoluto está aqui, ó absoluto,
diz lá se não estás, diz lá quem te deu o nome, quem te encontrou
perdido nas montanhas do gelo derretido, quem te pecou - ó absoluto
- quem te deixou como um fio de sangue rasgando o azul da Primavera
nos metais sonoros?"
Artemísia
já não se recordava praticamente do que lhe acontecera até ao
momento em que encontrara Armando. A tempestade do sexo tinha-a
atirado para outra dimensão. Não conseguia juntar pormenores,
hesitava sobre as primeiras palavras que pronunciara, depois vira-se
dentro de um táxi a caminho do Areeiro, parecia-lhe que havia subido
uns lanços de escada para tomar o elevador e pouco mais...
Nunca
lhe acontecera uma sedução do género, irremediável, pronta,
irracional, completa, mútua, vertiginosa, ao ponto de não ter
consciência sobre como sairia dali, por um movimento de porta,
sombra de janela, vão de claridade ou qualquer outro gesto de
significado obscuro.
Tinha
sido violada, de uma ponta à outra, sem remissão, mas isso não a
impedia de se sentir em paz consigo mesma e com o homem que se
encontrava estendido a seu lado na cama. Sentia-se feita em pedaços,
desarticulada em relação a outros momentos da sua existência,
representada em diversos lugares independentemente das horas,
suspensa na ponte de um rio com os cabelos transformados em cinza
voadora, esquecida numa linha de comboio ao ritmo das palavras
distribuídas pelas janelas da cidade, atirada com pedras e poesia
para o fundo de um mar que não tinha regresso.
"Afinal,
ser violada tem o seu interesse", pensava ela. "É só
entregar o corpo a um desconhecido. E se ele der cabo de mim, não é
nada que eu não deseje...".
Armando
já tinha conhecido outras mulheres antes de Artemísia. Mas eram
fechadas, presas, inibidas, medrosas, fingidas. Tinham uma visão
limitada do sexo. Algumas eram mecânicas, esquemáticas, funcionais,
operárias numa linha de montagem. E outras não eram capazes de
despertar a loucura que havia nelas.
Artemísia
era de outro planeta. Parecia conhecê-lo ao mais ínfimo pormenor,
na forma como tocava, contornava os músculos, a cor da pele, a luz
que havia escondida na sua alma.
Os
homens que Artemísia conhecera antes eram convencidos, arrogantes,
egoístas, preguiçosos, exibicionistas, exigentes. Um deles até
chegara a adormecer-lhe em cima enquanto copulavam, ressonando como
um navio bronco amarrado ao cais. Os homens que conhecera falavam
muito e diziam pouco. Exigiam, pediam, insistiam, como se ela tivesse
a obrigação de os satisfazer sem mais nada. Armando não olhava a
meios, não tinha princípio nem fim, não hesitava..., não
precipitava.
Por
qualquer razão, por uma sorte, talvez, Artemísia e Armando pareciam
feitos um para o outro.
O
maior prazer acontecera a seguir ao acto, quando os corpos se
imobilizaram e praticamente deixaram de respirar, esquecendo-se de
que estavam no mundo. Um prazer em tudo semelhante à morte, qualquer
morte, porque depois dela só há sossego.
Artemísia
e Armando eram dois náufragos que se recusavam a vir à tona de
água:
-
Diz alguma coisa... - murmurou ela, encostada a uma réstea de aragem
que acabara de entrar por uma nesga de janela.
Mas
Armando nem pestanejou. Parecia uma fera adormecida num vão entre as
sombras do quarto.
Ela
abriu os olhos e observou o espaço em volta sem mexer a cabeça,
para não partir qualquer coisa que estivesse ali mesmo à beira, uma
loiça fora do sítio, um vidro, um vaso...
Viu
tudo ondulante, vago, distante e nebuloso.
-
Estás morto? - perguntou receosa, embora soubesse que ele estava
mais vivo do que nunca...
Armando
reagiu, apertando-lhe levemente o pulso, num sinal remoto enviado de
outra galáxia, sem se preocupar em saber se estava realmente morto
ou vivo, em viagem de um cosmos para outro, ou se tinha chegado ao
ponto onde só pode haver paz de consciência, independentemente das
contradições em que se mergulha.
E
Artemísia fechou os olhos, numa despedida, num desejo de lembranças
sem fim, naquela data, naquele sentimento, naquela oportunidade, ao
lado daquele homem. Era uma sensação redonda com ângulos por todos
os lados e penugem de galos desfeitos na madrugada desprovida de
escala e de censura.
Tudo
o que lhe aconteceria nos próximos segundos e minutos poderia fazer
parte dos primeiros sinais de alguma coisa que faltava concretizar.
Por isso, tinha que concentrar toda a sua atenção no futuro, nos
momentos a seguir, na incógnita, na expectativa...
E
se Armando quisesse saber alguma coisa sobre o seu passado? E se lhe
adivinhasse os medos no fundo da consciência? E se tivesse o condão
de ler a sua alma sem que ela pudesse proteger-se?
Armando
começava a despertar, procurando dar um sentido ao espaço em que
mergulhara. A primeira ideia que lhe surgiu foi que havia de
fingir-se distraído se Artemísia lhe perguntasse alguma coisa sobre
os planos que tinha para o futuro. Seria importante não lhe dar
demasiadas pistas. E, para já, não estava interessado em ceder um
milímetro nos seus hábitos quotidianos. Travaria a eventual
curiosidade dela, orientando a conversa para fora dos seus redutos,
devolvendo-a ao passado, remetendo-a para o tempo que revela a
profundidade dos sentimentos imprevistos. Era uma estratégia quase
sempre infalível que ele usava com frequência.
Tinha
que acautelar-se, agora, porque Artemísia podia estar disposta a
tomar conta dele e de todos os pormenores que o seu corpo trouxera à
superfície. Havia que ser sincero, mas esquivando-se aos golpes e
desfechando outros certeiros no campo que desejava atingir. A não
ser que ela descalçasse os sapatos e algum dado novo se lhe
revelasse. Mas, no fundo, preferia as coisas como estavam, até
àquele momento.
À
sua frente, Armando via uma colcha negra sobre as decisões, um
mistério impenetrável sobre a compreensão, uma distância
inibidora sobre os gestos. Mas não lhe desagradava ficar ali
estendido para sempre, derretendo no calor das horas, rente à
ondulação dos caules verdes que se confundem com o mar cinzento.
Era capaz de explicar tudo com base no que já sabia sem ter que
aprender mais nada e sem ter que separar-se da mulher com quem se
encontrara naquela noite.
Artemísia
pensou que não havia grande diferença entre o homem que tinha a seu
lado e a imagem do Diabo que as histórias bíblicas davam a
conhecer. Para completar rigorosamente a figura de Satanás, Armando
só precisava de uns chifres e de uma cauda chispando fogo pela casa
fora. Era uma espécie de um segundo Deus, opondo uma força a outra
força, com o objectivo de conseguir o equilíbrio das naturezas. O
sexo era invencível, o amor, Deus e o Diabo.
Para
Artemísia, o Diabo, o sexo e Deus eram a liberdade, a grande
liberdade, onde é possível afirmar tudo, onde não há lugar a
dúvidas, nem certezas, nem promessas, nem congeminações - só
actos. Se o vazio de Deus era uma forma de prazer, a plenitude do
Diabo era outra (uma realização sem paralelo). Pensou que devia
tomar nota das ideias que lhe surgiam naquele momento, para depois as
analisar friamente, mas percebeu que o esforço seria em vão porque
mais tarde não seria capaz de refazer o contexto em que as mesmas
tinham sido elaboradas, o que lhes retirava todo o interesse.
Armando
via Artemísia como a tentação incontrolável. Mesmo sem dar bem
acordo de si, só conseguia repousar imaginando-a despida a seu lado,
sempre calçada, pronta a fazer sexo, sempre sexo e mais sexo.
Deus
e o Diabo eram do mesmo sexo. Artemísia é que não. Por isso,
era-lhe difícil compreender a verdadeira natureza dos mitos, a
verdadeira natureza do homem pelo qual se deixara violar.
O
prazer era a confusão, a indefinição, a vastidão, a solidão, a
rarefacção, a lassidão. O prazer era Deus e o Diabo ao mesmo
tempo, era Artemísia e Armando afundados nas alturas de um sétimo
piso, em Lisboa, sem fazer contas a nada, sem explicar o que se
passava, sem pensar nas consequências do que faziam.
O
mundo era um triângulo redondo com vinte olhos na cabeça, um cavalo
escrevendo na planície com rosas, um vazio de luzes sobre o
precipício, um corpo deitado junto a outro corpo, um silêncio de
contenções por dentro do néon invisível.
Artemísia
e Armando já não recordavam o sítio onde tinham deixado os sexos.
E enquanto procuravam lembrar-se, esboçaram os primeiros movimentos,
para vir à tona da realidade, pondo-se a tactear os lençóis em
redor, os músculos, as peles, os cheiros, as divagações, as
obscuridades.
Olhando
para o relógio caído no soalho junto a uma dobra de lençol,
Armando reparou que eram três e vinte cinco da madrugada. Só que
podiam ter passado dias, ou anos, desde o primeiro momento em que a
alma dele se perdera dentro da alma dela, para ficarem ambos
reduzidos ao monte de carne e despojos em que se resumiam agora.
6
Ao
fim de uma quantidade de tempo em que nada parecia ter acontecido, e
em que tudo se tinha realizado como num milagre de sensações
libertas, Artemísia levantou-se e foi para a cozinha mexer em
coisas, nos tons das superfícies perpendicularmente lisas até à
horizontalidade, nos armários, nos espaços que havia por detrás de
cada movimento, nos pratos, no frigorífico que tremelicava,
parecendo que a casa era dela, e que a noite não tinha descanso ou
que o seu corpo de repente tinha necessidade de refazer toda a
agitação que se esvaíra nas horas anteriores.
Ela
olhava para os utensílios, para os frascos, para os tachos, e
punha-se a tentar compreendê-los, o que a fazia mudar as coisas de
um sítio para outro (às vezes, apenas uns centímetros, ou uns
breves milímetros...), como se cada objecto precisasse de estar às
suas ordens e pudesse ser reconcebido naquele preciso instante de
conjecturas inexplicáveis.
Tudo
lhe parecia novo e brilhante. Os azulejos, as máquinas, a chaminé,
as cadeiras em volta da pequena mesa à espera que a madrugada
clareasse, o chão, a caixa de fósforos, os panos, as toalhas, os
detergentes, a inclinação dos móveis rastejantes.
A
certa altura, Artemísia abriu a porta do frigorífico e não foi
capaz de perceber a que fim se destinavam os artigos que tinha diante
dos olhos. Fechou a porta e logo a seguir voltou a escancará-la,
deixando a mão suspensa no puxador. Olhava e pensava em círculos
que a faziam recuar para espaços negros sem regresso, em espirais
que a levavam a rodopiar dentro de si, em linhas rectas que a
deixavam desvairada sobre as arestas de cada segundo que passava.
Artemísia era o espaço dos olhos à sua frente na luz branca que a
transfigurava, vista de baixo para cima, descendo das nuvens sobre a
terra iluminada.
Depois,
ela ergueu a voz através da distância dos quartos e perguntou a
Armando o que lhe apetecia para o pequeno-almoço!
As
suas palavras avançaram aos solavancos pela casa e foram
estatelar-se junto à cabeça dele, que não teve forças para
responder. Mas o certo é que lhe apetecia comer a casa toda, o tempo
todo, as lembranças todas, os desejos todos que ainda havia por
descobrir na aventura dos gestos. Apetecia-lhe comer as paredes, os
móveis, os cheiros, as roupas! Apetecia-lhe comer o vento, o calor,
o prazer, o sexo sem definição que havia em todas as coisas que o
rodeavam naquele momento. Apetecia-lhe comer as ruas, os edifícios,
os parques de estacionamento, as pontes sobre os rios, os governos,
as instituições mais indecifráveis, para que aquela noite fosse
mais completa do que nunca. E não tivesse fim. Apetecia-lhe comer
algo imenso, impossível de concretizar, a tentação insuperável da
plenitude. Comer as ondas e as tempestades, comer a ideia, as ideias,
comer...
Na
cozinha, Artemísia deixara aberta a porta do frigorífico e parecia
louca, fazendo um barulho ensurdecedor com os pratos e com tudo o que
apanhava à mão. Abria torneiras, varria o chão, punha roupa na
máquina de lavar, acendia o lume, ligava o esquentador,
inspeccionava o microondas, tudo ao mesmo tempo, tudo com uma energia
indomável, e a seguir a cada ruído vinha sempre outro maior que se
somava ao anterior e assim a casa ia-se enchendo de uma vida que não
se sabia onde começava nem acabava.
Ele
perdido no caos dos apetites e ela desenfreada nos ângulos abertos
do espaço por dentro dos quais se fabricam possibilidades
inverosímeis.
A
dada altura, Armando não suportou continuar a ser agredido por tanto
barulho e gritou na direcção da cozinha:
-
Que raio estás a fazer?
Mas
ela não o ouviu. Por amor, por repentino amor, dedicava-se toda ao
arranjo dos objectos entre os quais Armando passava os seus dias.
Artemísia
continuou a fazer ruídos de toda a espécie, ali mesmo, indiferente
às horas e aos preconceitos, indiferente às tensões.
-
Deixa-te dessas coisas! - voltou a gritar ele. - Vem para a cama.
Só
que ela se sentia tão feliz que era como se estivesse mesmo na cama,
aninhada entre os seus braços..., entre os braços de uma cafeteira,
de um tacho ou de um armário. Os ruídos que fazia eram uma música
aterradora que vinha do passado e que ela não queria recordar,
porque levavam a noite a confundir-se com a poeira do dia, enquanto
as máquinas avançavam ao mesmo tempo que as balas na verdura
intragável.
Artemísia
punha as mãos na cabeça, encostava-se à superfície fria da parede
e dizia para si mesma, de forma visivelmente aflita:
-
Vão-se embora, vão-se embora, que eu não digo nada, não digo
nada, prometo não abrir a boca...
A
seguir, punha-se à espera a ver se a tinham deixado em paz. Mas o
barulho dos disparos longínquos voltava a inundá-la numa ameaça
cujos contornos não era capaz de definir.
Depois,
ela procurava acalmar-se, dizendo para si mesma que aquilo não era
nada, que era impressão sua, que era simplesmente medo, que se veria
livre dos ruídos se conseguisse entreter-se com outra coisa. E a
verdade é que tudo naquele momento era distante, nitidamente
distante, ao ponto de poder ser escalpelizado, desmontado peça a
peça, analisado sob a lupa da vontade. E por ser distante deixava-a
ansiosa, arreliada, inquieta. Porque os canos das armas ficavam
apontados aos seus olhos como caules de flores decepadas por onde só
faltava correr o sangue da rebeldia esmagada sob a insegurança do
poder.
E,
então, Artemísia punha-se de novo a mexer em tudo o que lhe
aparecia pela frente, para não ver, para não ouvir, para não
recordar! O mais fácil seria procurar protecção junto de Armando,
mas não queria que ele se apercebesse da sua aflição logo no
primeiro dia em que se haviam conhecido. Podia ficar com uma ideia
errada acerca dela. Um dia, talvez, lhe contasse o que sentia, o que
ouvia, o que temia.
Alheio
ao que se passava na cozinha, Armando avançou para a casa de banho,
desviou os olhos quando passou diante da porta da cozinha, abriu a
porta, pensou acender a luz, mas depois de tactear duas vezes com a
ponta dos dedos sobre a parede desistiu, espreguiçou-se, sacudiu a
cabeça.
Abriu
o tampo da retrete, sentou-se e ficou para ali sem fazer nada, só
deixando esvoaçar os pensamentos esvaziados até desaparecerem na
bola escura que se tinha abatido sobre a sua cabeça.
Artemísia
estava dentro dele e ele dentro de Artemísia, por isso não
precisava de se preocupar com nada do que acontecera naquela noite.
Aquela noite era sempre, era todas as noites, todos os dias, todas as
horas, e Artemísia fazia parte desse mundo em que de repente ambos
haviam entrado sem se darem conta.
O
barulho que fazia na cozinha era apenas a excepção que confirmava a
regra. Artemísia devia estar com olhos de animal vadio, devorando os
movimentos em redor, sem pedir explicações nem querer perceber as
causas profundas dos factos. A sua postura era a da sobrevivência,
conforme se notava pelo estilo dos sapatos. Se tivesse Lisboa à
disposição, ela tomaria conta da cidade num canto de quarto onde se
morre de olhos abertos para a luz.
Armando
levantou-se da retrete e debruçou-se sobre o lavatório, pondo-se a
lavar os dentes, sempre com a luz apagada, para não ferir os olhos.
Terminada
a tarefa, acendeu a luz, olhou para o espelho e viu o seu rosto
iluminado pelo clarão da pele. Coçou um ombro, rodou sobre si mesmo
e notou que tinha qualquer coisa nas costas. Por pouco não desviou a
atenção para outro assunto. Mas, num último instante, decidiu
verificar. Sentiu que havia mesmo qualquer coisa...
Não
demorou a compreender: tinha as costas arranhadas, até ao sangue, de
alto a baixo, cheias de feridas abertas por unhas, ou por pontas de
chicote com lâminas afiadas que tivessem deslizado cortantes sobre a
sua alma desprotegida.
De
um instante para o outro, ficou sem saber o que pensar. Pôs a
hipótese de ter visto mal, de ter sido impressão dele, de se ter
deixado iludir por um reflexo mais afoito da luz que enchia a casa de
banho.
Voltou
a fixar o espelho, torcendo os rins com determinação - não dava
para enganar - as marcas de sangue tinham-lhe cortado a pele nas mais
variadas direcções das costas com rios vermelhos desenhados no seu
corpo.
Estranhamente,
não sentia qualquer dor, o que o deixava confuso quanto à ocasião
em que os arranhões teriam sido feitos e quanto à profundidade dos
instrumentos pontiagudos que os haviam materializado.
Mas
como poderia alguém tê-lo ferido daquela maneira sem que ele se
desse conta? Seria possível ter sido vítima de algum produto
anestésico enquanto fazia sexo? Teria sido confundido com outro?
Artemísia teria perdido o equilíbrio?
As
ideias e medos vinham-lhe à cabeça descoordenadamente. Nos últimos
dias, não estivera despido junto de ninguém. Por isso, Artemísia
era a única pessoa que podia ser responsável por semelhante
façanha. Ele não a conhecia de parte alguma. Não sabia com quem
estava metido.
Se
calhar, não era por acaso que ela fazia todo aquele barulho na
cozinha com pratos e talheres. Se calhar, o objectivo dela era
assustá-lo, desestabilizá-lo, desnorteá-lo, para depois o
assassinar, fria e metodicamente, algures, na parte mais recôndita
da sua própria casa, abandonando-o a seguir por tempo indeterminado,
por tanto tempo quanto fosse necessário para o descobrirem depois
repleto de bichezas imundas, lagartas, percevejos, piolhos e toda a
espécie de roedores que devoram a alma dos mortos.
Mas
Artemísia também podia estar envolvida com Arnaldo num qualquer
esquema que ele desconhecesse. Porventura, teriam precisado do seu
apartamento para tramar alguém, um negócio ou brincadeira de mau
gosto que os tivesse obrigado a usá-lo para fins de sexuais, a fim
de que Armando não desconfiasse de nada. Neste caso, era possível
que Arnaldo tivesse sido contactado por Artemísia, secretamente, e
se preparasse para aparecer a qualquer instante, batendo à porta de
surpresa e exigindo entrar para partilhar a cama com eles! O facto de
ela nunca descalçar os sapatos poderia ter a ver com o facto. Nos
sapatos dela poderia estar escondida uma microcâmara, qualquer
tramóia para o apanhar.
Tudo
passava pela cabeça de Armando. Tudo e mais alguma coisa. O mais
certo, porém, era Artemísia ter perdido o controlo e ter desatado a
arranhá-lo daquela forma, sem olhar a meios, sem pensar na lógica
da excitação, sem ter em conta o imprevisto e a novidade que
constituía aquele encontro.
Por
outro lado, podia tê-lo feito intencionalmente, para evitar que ele
pudesse estar na intimidade com outra mulher durante os próximos
tempos. E por cada unha aguçada que lhe cravou na pele, ela deve ter
pensado que o tinha mais preso, só para ela, sem hipóteses, sem
alternativas.
Era
demais. Armando sentia-se perplexo. Já estivera com outras mulheres
na cama, mas nenhuma jamais se atrevera a marcá-lo daquela forma.
Artemísia deixava claro que seria ela a definir as regras do jogo.
Arranhando-o de alto a baixo, como um Cristo chicoteado a caminho da
cruz!
Armando
saiu da casa de banho disposto a enfrentar Artemísia. Ao vê-lo, ela
deu uma risada enorme, como se a observação do sangue e das feridas
a divertisse profundamente.
-
Dói-te, querido? - perguntou, dificilmente contendo as gargalhadas.
- A “mamã” vai tratar das tuas feridas!
E
enquanto assim falava, aproximou-se dele, pé ante pé, com cara de
quem estava disposta a retalhá-lo em postas.
-
Não estou a perceber a tua ideia - protestou ele. - Escusavas de me
ter arranhado desta maneira!
Ela
respondeu logo que não o tinha feito com intenção. Se assim tinha
acontecido fora porque não havia sido capaz de dominar a atracção
que ele provocara nela. De qualquer modo, os arranhões seriam a sua
marca no corpo de Armando, argumentava, entre novos sorrisos, agora
mais abertos e despojados.
-
Não me digas que te deixei em maus lençóis perante alguma
namorada... - disse ela, estudando-o e só então pensando que nem se
preocupara em saber se ele tinha algum compromisso com outra pessoa.
-
O problema não é esse - respondeu ele. - O que eu gostava era de
compreender o significado do que fizeste. Podes ter um instinto
animal que se torna incontrolável nos momentos de maior prazer...
-
Não foi por mal - disse ela. - De qualquer maneira, não me apercebi
do que estava a acontecer porque nunca te queixaste.
-
Não me queixei porque não senti nada! - replicou Armando, enquanto
pensava de si para si que as unhas de Artemísia podiam ter
contribuído, afinal, para o prazer inigualável que tivera naquela
noite. Uma sensação de ser trincado, mastigado, devorado, aos
poucos; de ser apertado, sugado, apanhado, abalado, esventrado.
Ela
conquistara-o com os sapatos, com as mãos, com as pontas dos dedos,
com as unhas, à semelhança de garras de guindastes levados por
águias que o tivessem elevado nas alturas até à vertigem da
descoberta que todos ambicionam e perseguem.
-
Agora, tenho a certeza de que nunca mais me esquecerás - acrescentou
Artemísia. - O nosso encontro não podia ser igual a tantos outros
que acontecem todas as noites, em Lisboa e por esse mundo fora. Não
sou uma mulher que encontraste por acaso...
Armando
concordou que as unhas dela tinham feito a diferença. E ficou a
pensar no que Artemísia dissera: "Não sou uma mulher que
encontraste por acaso...".
Como
as costas não lhe doíam, não chegava a estar preocupado com o
sucedido. Além do mais, nem tinha os arranhões diante dos olhos
para se interrogar, para se inquietar...
Vendo
bem, Artemísia tivera a arte de o seduzir, de o envolver, de o
vergar. E, provavelmente, os seus receios não faziam sentido. Porque
se ela fosse uma assassina, ou uma espia, não estaria a rir com os
olhos brilhantes, ali mesmo, à sua frente, com um rosto de ave
acabada de levantar voo.
-
Queres que te ajude a arranjar a cozinha? - perguntou ele, ao ver a
confusão em que se encontrava tudo em redor.
Mas
ela disse que não e mandou-o de volta para a cama. Ela
preparar-lhe-ia o pequeno-almoço, uma refeição como nunca tomara,
às tantas da manhã.
-
Verás que nunca mais pensas nos arranhões - disse, em jeito de
provocação.
Ao
contrário do que seria habitual numa situação do género, Armando
obedeceu-lhe, retirando-se e indo recostar-se na cama, enquanto
pensava na capacidade que ela ainda teria (ou não) para o
surpreender.
Artemísia
olhou à sua volta na cozinha e pensou na forma mais rápida e eficaz
de reorganizar todos os tachos, cafeteiras, pratos e talheres que a
sua excitação tinha deixado à mostra sobre os móveis, a mesa, o
frigorífico, as cadeiras.
Encontraria
solução para o pequeno-almoço. Recordava-se de ter visto morangos
no frigorífico. Não seria má ideia. A coroar uma noite daquelas,
nada melhor do que uma taça de morangos. Vermelhos e redondos no
auge da euforia, a seguir à manteiga, ao pão, ao café fumegante.
Os
primeiros raios entravam pela janela da cozinha, deixando o corpo de
Artemísia coberto por uma ligeira névoa luminosa. Nua, sob a
claridade difusa, ela movimentava-se, nervosamente, por entre o
espaço disponível, rente às sombras dos seus próprios gestos, ao
ritmo dos objectos impacientes por estarem fora dos seus lugares,
sobre os sapatos indecifráveis que a acompanhavam para todo o lado.
7
-
É estranho não sabermos nada um do outro - disse Armando, quando
estavam os dois sentados no colchão a comer pão com morangos.
-
Ainda não tivemos tempo para isso - comentou ela.
-
Já estamos juntos há umas horas e não disseste nada sobre a tua
vida.
-
Até parece que já te deste a conhecer da cabeça aos pés...
-
Quer queiras, quer não, estás na minha casa, o que é sempre uma
maneira de saberes alguma coisa de mim. No espaço que habitamos,
estão os nossos gostos, as nossas tendências, as nossas
preocupações..., e tu passaste a ter acesso a tudo isto a partir do
momento em que entraste aqui.
-
Olha que logo depois de sairmos do cinema, eu queria ir para a minha
casa...
-
Mas acabaste por vir comigo. Não me admiraria nada que o tivesses
feito com alguma intenção, apesar de teres encenado o contrário...
Artemísia
ficou tensa. De olhos arregalados, não queria acreditar no que
ouvia. Como seria possível ele falar daquela forma depois de tudo o
que acontecera?...
-
É por isso que não gosto de falar muito. Prefiro estar calada do
que dizer asneiras! - desabafou.
-
Falar é uma forma de existirmos, de nos revelarmos, de evoluirmos.
Podes achar que não dizes asneiras, mas também vives sufocada sob
tensões.
Ela
exigiu que ele fundamentasse a sua afirmação, perguntando que sabia
ele sobre ela para fazer uma tal afirmação...
-
Deves ser daqueles que insinuam coisas porque não têm coragem de
dizer o que pensam - afirmou Artemísia, enquanto ele a olhava
vergada sobre os lençóis com a mesma expressão com que observara o
seu corpo pela primeira vez. - Podes dizer o que quiseres, podes
saltar e pintar o que entenderes que eu não conto nada!
E
pouco depois de um compasso de espera, Artemísia defendeu que a
melhor forma de alguém se dar a conhecer era entregando-se de corpo
e alma!
Armando
ripostou, alegando que ela tinha dado o corpo, realmente, a alma é
que não:
-
A alma está nas palavras que tanto odeias - disse ele. Ou julgas que
a alma é uma nuvem ou uma claridade sem contorno em que te escondes
do mundo?
-
Quem te disse que eu me escondo do mundo?!
-
É o que parece.
-
Não achas que já insinuaste demasiadas tolices a meu respeito?
-
Não te enerves - replicou ele. - Tens a sensibilidade à flor da
pele, tens o ar de quem foge de alguma coisa invisível, tens cinza a
arder nos olhos e desconfias de tudo que se possa dizer a teu
respeito...
-
Se me deixares respirar, talvez eu consiga mostrar-te que não sou
assim tão nervosa e inquieta... Quanto à alma e às palavras, sabes
muito bem que há pensamentos, ideias e desejos que não se
manifestam através de palavras.
-
Isso de pouco ou nada vale, se não for transmitido aos outros. As
palavras são o único caminho através do qual te podes dar a
conhecer. Não faz sentido que reduzas tudo ao sexo. Podes dizer que
não concordas, mas o certo é que, na prática, é isso que
acontece. No fundo, és só corpo, fundamentalmente corpo...
Ela
altercou que ele via sexo em toda a parte e que daí a pouco diria
que ela estivera na cozinha a fornicar com as louças e os talheres!
Acrescentou que ele devia considerar-se feliz e realizado por ela ser
assim. Depois, acentuou que o seu corpo era imaginativo bastante para
chegar aos terrenos da alma. Que esta não tinha limites e que havia
muitas maneiras de a alcançar. - A alma é o gesto que se torna
reflexo da ideia...
Armando
retorquiu que, por aquele caminho, ela estava em vias de construir
uma nova poética filosófica, mas nem assim Artemísia se atemorizou
e insistiu que já tinha falado bastante de si, das suas preocupações
e da sua forma de estar na vida.
Ele
procurou pôr alguma água na fervura, mas disse que ela fora
demasiado abstracta e que nem tudo batia certo na sua história. E
talvez fosse essa desfocagem que fazia com que ela fosse tão
criativa na linguagem do corpo.
-
Estás a reduzir-me a um objecto - disse ela, visivelmente arreliada.
Mas
Armando achava que não, pelo contrário, ele é que estaria a ser
objecto nas mãos dela, uma vez que não tinha acesso à realidade da
sua vida, aos seus problemas, às suas desilusões, aos seus medos,
contentando-se ela em possuir o seu corpo:
-
Não sou um boneco de carne! - vociferou ele, a certa altura,
pretendendo deixar definitivamente claro que tinha uma visão da vida
que ia bastante mais longe do que a simples experiência de uma
noite, por mais intensa, estranha e inexplicável que fosse...
Artemísia
tinha deixado escorregar a cabeça sobre os joelhos e parecia não
ter mais fôlego para o acompanhar...
-
É melhor ficarmos por aqui - exclamou ela, sem conseguir disfarçar
a irritação. - Não podes obrigar-me a falar do que não quero.
-
Mas eu não te obrigo a coisa nenhuma - respondeu ele. - Tu é que
sentes como se eu te obrigasse. Por isso te fechas sobre ti mesma e
te oprimes dessa maneira.
Artemísia
deu um salto na cama e pediu que Armando não insistisse naquele tipo
de argumentação. E logo a seguir:
-
Já agora, quando decides dizer alguma coisa acerca de ti?
-
Lá estás tu outra vez... - respondeu ele, enquanto se engasgava com
um morango. - Mas não é por isso que vou deixar de te responder. O
meu passado é hoje, é agora, é estar aqui contigo, sentado no
tempo de um comboio que não chegou a sair da estação, embora nunca
tenha interrompido a viagem. Parece um paradoxo, mas é a minha forma
de ver a vida.
-
Fiquei a saber o mesmo que antes... - disse ela.
-
Mas eu sou apenas isto, exactamente - insistiu Armando. - Sou isto
que vês e tudo o que me antecedeu. Sou o somatório de todo um
vivido até aos dias de hoje. Como queres que te ponha tanta coisa em
palavras? É impossível. Se quiseres perceber, terás que me
acompanhar na viagem interminável que nunca chega a sair da estação.
-
A tua teoria procura apenas impedir que eu te conheça. Falas em
viagens para te esquivares. E dizes para eu te acompanhar quando
sabes que não o posso fazer porque não tenho dados nem pontos de
referência sobre a tua pessoa. Ao menos assume que não queres
dar-te a conhecer...
Armando
sugeriu que fossem por partes. Primeiro ela, depois ele... Caso
contrário nunca mais se entenderiam.
-
Mas que queres que te diga sobre mim ? - perguntou Artemísia. -
Queres que te conte tudo o que fiz até hoje? Queres que te conte
todas as refeições que tomei e todas as lojas em que entrei? Queres
que te conte todos os passos que dei em Lisboa, todos os namorados
que tive, todas as esperanças que perdi? Queres que te conte todos
os livros que li, toda a música que ouvi, todo o cinema que vi?
Queres que te conte todos os meus traumas e todas as minhas
esperanças? Queres que te revele o medonho segredo dos meus sapatos?
Não achas que é preciso pôr limites nas coisas? Não te parece que
esta noite já vivemos bastante, já gozámos bastante, já nos
aproximámos bastante?
-
Não contes nada - replicou ele. - Não te atormentes sem razão. De
uma maneira ou de outra, estás sempre a comunicar. Ou através do
corpo, ou através das palavras. Já percebi que não te sentes à
vontade para falar. Tens a postura de quem cometeu um crime cuja
lembrança não se atreve a enfrentar. Se é assim, fiquemos pelo
relacionamento físico, fiquemos pelo sexo... Não quero entrar em
zonas proibidas da tua vida, a não ser que desejes a minha companhia
sempre que tenhas necessidade de lá regressar...
Artemísia
estava visivelmente constrangida com os argumentos de Armando. Nunca
pensara que um homem com o qual tivera tanto prazer pudesse tornar-se
tão mesquinho de um momento para o outro. Antes estar com um
psicopata violador! E, pela primeira vez naquela noite, arrependeu-se
de ter entrado no táxi que a trouxera até ali. Como poderia
continuar a relacionar-se com um indivíduo que não a deixava
respirar, bombardeando-a com perguntas e raciocínios despropositados
de toda a espécie? Já não lhe apetecia comer morangos. Armando que
os comesse todos.
Por
seu turno, ele parecia ter ficado subitamente alheio à conversa e ao
pequeno-almoço, tendo-se estirado sobre o colchão, de repente
absorto, distante, mudo, no fundo de uma lagoa à sombra do Verão.
Instalou-se
a divisão entre ambos. Nenhumas palavras pareciam capazes de os
trazer de volta ao espírito de comunhão vivido até há poucos
momentos atrás.
Artemísia
pôs-se a esmagar morangos com os dedos dentro do prato que tinha à
sua frente, com uma fúria descomunal nas unhas, nas mãos, nos
pulsos, uma fúria que lhe vinha de todo o corpo e que só poderia
encontrar realização no sumo de morango que lhe avermelhava a pele
dos movimentos.
Quando
já não lhe restavam morangos para esmagar, quando já só tinha
sumo no prato, lavou as mãos no próprio sumo e pôs-se a pintar o
corpo de Armando, massajando-o, avermelhando-o, no tórax, no
pescoço, no ventre, nas pernas..., sempre sem palavras, em
movimentos ritmados e lentos.
-
Podes experimentar o que quiseres que as tuas artimanhas não me
convencem! - disse Armando, sem mais nem menos, enquanto ela se
encontrava distraída a esfregá-lo.
As
suas palavras paralisaram-na. Ficou de mãos suspensas no ar a
olhá-lo, sendo evidente que não conseguia soltar uma resposta.
-
Continua o que estavas a fazer - sentenciou Armando, de forma seca e
implacável. - Posso muito bem falar e tu massajar. Cada um faz o que
melhor sabe. Não desperdices o teu talento. Vai, mexe-te, ao menos
acaba o que começaste, se é que isso tem algum sentido.
Artemísia
obedeceu-lhe e continuou a massajá-lo com sumo de morango pelo
corpo, desde o rosto e os ombros até aos dedos dos pés, enquanto
ele não desistia de falar, esgrimindo ideias consigo próprio,
brandindo raciocínios, propondo soluções, hipóteses, esquemas...
Entretanto,
ela parecia não ouvi-lo. Besuntava-o com as mãos e mantinha-se
calada, estranhamente submissa.
Por
seu lado, ele endurecia o discurso e ordenava-lhe que fosse mais
lesta nos movimentos de mãos:
-
Já agora, podes aperfeiçoar aquilo em que és mais competente...
Mas
como Artemísia não lhe respondia, ele voltou ao seu terreno
favorito:
-
Se reparares bem, nem precisas de falar para eu te conhecer. Porque a
recusa das palavras já diz muito sobre a personalidade de cada um.
Quanto mais calada estiveres, mais nítida será a ideia que tenho de
ti. O problema é o recalcamento que isso significa. A questão não
está em eu querer saber alguma coisa, mas em tu não quereres dar-te
a conhecer. Aliás, se não queres abordar o passado, alguma razão
haverá para isso...
-
Mas quem falou do passado?... - retorquiu Artemísia em voz hesitante
e baixa.
-
Porquê? Não se pode falar do passado? Quer queiras, quer não, és
apenas passado. Mais nada. O certo é que está na altura de dizeres
alguma coisa sobre ti e até agora pouco ou nada adiantaste.
Em
resposta à sua afirmação, ela limitou-se a aumentar a pressão das
mãos sobre o ventre dele, todo avermelhado de morango desfeito,
fazendo lembrar um corpo descascado, em carne viva, dorido, acabado
de retirar do fundo de uma terra molhada.
Quanto
mais as mãos dela deslizavam sobre a sua pele, mais vontade ele
sentia de tentar vasculhar a vida dela. Porque se Artemísia se
revelava assim repentinamente submissa, algum motivo haveria no seu
passado que o explicasse. A sua grande batalha estava na explicação.
Ele só queria perceber. Só queria descer um pouco mais às raízes.
Não admitia que a manhã chegasse e ela fosse praticamente a mesma
mulher que entrara em sua casa horas antes. Até porque só
consentiria em continuar a encontrar-se com ela se tivesse uma ideia
sobre os labirintos em que se movimentava.
E
a visão de Arnaldo voltou a surgir na sua mente, como se houvesse
qualquer coisa de menos claro no encontro fortuito que os três
haviam tido no cinema. Por mais esforço que fizesse, ele não
conseguia deixar de ver sexo no rosto de Arnaldo. Não ao nível do
desejo, mas ao nível da realização. O rosto alongado e másculo
não podia significar outra coisa. Era impossível Artemísia não
ter ido para a cama com ele. A rapidez com que Arnaldo tinha
desaparecido de cena era sintomática. A sua falta de à vontade fora
mais do que óbvia.
-
Achas que Arnaldo se importaria se soubesse que tínhamos feito sexo?
- perguntou ele com aparente desinteresse.
Mas
Artemísia não lhe satisfez a curiosidade. Deitou-se a seu lado na
cama, com os olhos fixos nos sapatos. Precisava de libertar a alma
que tanto parecia atormentar Armando.
-
Pelos vistos, não te interessa tocar no assunto - insistiu ele. - Se
tudo fosse tão simples e transparente como pretendes, não terias
problemas em contar o que se passou entre vocês. Depois, és capaz
de dizer que eu sou assim e assado, que sou chato e impertinente, mas
és tu que, no fundo, provocas esta situação, ao não seres capaz
de comunicar com quem fala contigo. Se não dizes nada, é porque
estás a pensar noutro! Se estivesses a pensar em mim, respondias às
minhas perguntas. E se estás a pensar noutro, estás a ser-me
infiel. Logo na primeira noite! Claro que Arnaldo não apareceu por
acaso no cinema. Se calhar, vocês tinham combinado ir os dois a uma
sessão, mas depois desencontraram-se e, ao ver-te, ele já não quis
explicações, pondo-se a andar, antes que fosse tarde demais.
-
Quando acabares de inventar coisas, avisa - balbuciou ela.
-
Dizes que estou a inventar, mas não esclareces nada. Se eu estivesse
de facto a inventar, havias de me corrigir. Mas até pareces
mergulhada no secreto prazer de me ver adivinhar o que se passa na
tua vida, como quem assiste a um filme que não teve coragem de
realizar.
-
Não deves estar bom da cabeça - ripostou Artemísia. - Se bem te
lembras, tu e Arnaldo já estavam juntos a conversar quando me
aproximei.
-
Quem fala em aproximação és tu... - disse Armando. Se não te
tivesses metido na conversa, nada disso teria acontecido... Não nos
tínhamos conhecido e agora não estávamos aqui a discutir.
Artemísia
replicou que não pedira para lhe ser apresentada e que, por isso
mesmo, a responsabilidade devia ser atribuída a Arnaldo. De qualquer
maneira, confessava que se aproximara de ambos com o secreto desejo
de conhecer Armando. Só que este se recusava a aceitar tal
explicação. A seu ver, Artemísia dizia aquilo apenas para o
acalmar, pois fora mais do que evidente que a sua intenção era
ficar com Arnaldo e que este, por ser amigo de Armando, é que se
afastara estrategicamente.
-
Ou porque já não podia ver-te na sua frente! - disse Armando. - Não
te esqueças que conheço Arnaldo muito bem. Se digo que houve alguma
coisa entre vocês é mais pelo que conheço dele do que pelo que
conheço de ti.
Artemísia
colocou as mãos sobre o ventre e manteve-se de olhos fixos no tecto,
fazendo um grande esforço para se controlar. Depois, a ver se ele
acalmava, virou-se para o lado direito, de costas para a voz que não
se calava. Os cabelos negros escorregaram-lhe para o rosto, fazendo-a
sentir-se mais protegida da fúria de Armando. Com o sumo de morango
já seco no corpo, ele parecia ter fervido num banho de tinto. Mas a
sua obsessão estava toda em Arnaldo.
-
Vendo bem as coisas, vocês são os dois muito iguais - reflectiu
Armando em voz alta. Já conheço Arnaldo há muitos anos e nem sei
onde ele nasceu. Por alguma razão isso acontece. E, agora me lembro,
também o conheci numa sala de cinema! Será apenas coincidência?
Ele tem aquela uma cara de sexo que nunca mais acaba, mas sempre foi
esquivo em falar-me sobre qualquer miúda com quem tivesse ido para a
cama. Já agora, importas-te de dizer qual de nós preferes, qual de
nós é mais convincente entre os lençóis?! Por que paraste de me
dar massagens? Estavas a pensar nele e de repente apercebeste-te que
ele era outro? Ou será tudo uma questão de conta bancária?...
E
Armando calou-se, de súbito, com a sensação de que tinha passado
os limites. O silêncio entrou e encheu os cantos de um líquido
venenoso impossível de travar. O tempo estendeu-se pelos anos fora.
Sem palavras. Artemísia continuava de costas para ele. De costas
para o significado da frase que Armando proferira. Recusava-se a
repeti-la para si mesma. Via-se que já não juntava as sílabas dos
vocábulos. Já não via sentido nos ecos que perduravam... Estava
toda enrolada sobre si própria, com uma das mãos entre as pernas,
uma mão tensa, pequena, frágil, fechada como se guardasse um anel
maldito.
8
Armando
sentiu que Artemísia poderia despedaçar-se em mil partes se ele
avançasse com um dedo sobre os lençóis. Ou levantar-se-ia mesmo
para o agredir de repente.
Pensou
em telefonar a Arnaldo, mas depois de reflectir uns instantes
percebeu que o melhor seria não se precipitar. Arnaldo não gostaria
de ser incomodado àquela hora da manhã.
De
uma forma ou de outra, se Arnaldo alguma vez se envolvera intimamente
com Artemísia, acabara por desistir, a avaliar pela facilidade com
que no átrio do cinema tudo fizera para que Armando e Artemísia
ficassem juntos. Mas também podia ser que Artemísia o tivesse
abandonado...
Um
dia, Arnaldo chegara a convidar Armando para saírem com umas amigas
e as recordações que guardava da experiência não eram as mais
entusiasmantes. Nessa altura, o convívio íntimo de Armando com
mulheres era nulo. Acabaram todos num quarto qualquer, de uma casa
qualquer, de um colega qualquer. Apagaram as luzes e deixaram as
horas correr, cada um agarrado a alguém, abraçado ao pescoço de
quem lhe tinha calhado em sorte, um par deitado no sofá, outro na
alcatifa, outro encolhido junto à porta, outro ainda perdido no
escuro, sem sítio certo, sem definição...
Armando
estava sobre a alcatifa e não se sentia à vontade porque de cada
vez que estendia uma perna tocava num sapato que estava ali a poucos
milímetros de distância... O que mais o incomodava era desconhecer
se se tratava de um sapato de mulher ou de homem. Não sabia como
reagir, como proceder, como pensar... Sentia os códigos baralhados
por completo. Às cegas, os sapatos faziam-lhe uma impressão
incontrolável. Não sabia se eram grandes ou pequenos, castanhos ou
azuis, com pala ou atacadores, de salto alto ou baixo, a não ser que
se pusesse a apalpá-los minuciosamente, o que não era de todo
conveniente naquela situação.
Os
sapatos eram importantes porque eram a base das pernas, o seu ponto
de apoio. Mas havia uma grande diferença entre as pernas dos homens
e das mulheres. E Armando sentia-se especialmente perturbado ao pôr
a hipótese de ficar envolvido com uma quantidade de pernas, sem
saber bem onde os factos realmente começavam. Com a pressa, a
maioria das pessoas não tinha tirado os sapatos, entregando-se uns
aos outros com sofreguidão.
Os
sapatos davam consistência às atitudes. Eram uma forma de
solidificar a relação entre os pés e o chão. As pessoas
sentiam-se seguras com os sapatos nos pés. E podiam desatar a correr
a qualquer momento.
Na
cama, os sapatos podiam mesmo ser uma arma. Na noite em que se viu
estirado sobre uma alcatifa tendo a seu lado uma mulher que nunca
antes vira na sua frente, pouco antes de a luz se ter apagado,
Armando recordava-se de ter visto Arnaldo estendido no sofá ao lado
de uma gorda que quase o devorava com os avanços de seios e braços,
o que de certa maneira contribuiu para que Armando ficasse com a
ideia de que Arnaldo era um ser sexualmente superior. Visivelmente
atarefado com a mulher que lhe coubera em sorte, Arnaldo fartou-se de
recorrer a várias soluções menos ortodoxas, ao ponto de ter
tentado satisfazer a companheira metendo-lhe o pé calçado entre as
pernas unidas pelas carnes redondas e flácidas. Ela agarrou-se-lhe
ao ouvido e deve ter suplicado que ele não lhe rasgasse as meias!
Quem se aguentava com uma mulher daquelas tinha que ser especialmente
dotado.
Depois
do quarto ter ficado às escuras, o movimento de braços, pernas,
sapatos, lábios, seios, rins aumentou vertiginosamente. Arnaldo já
devia estar nas nuvens de uma montanha russa, quase sem respiração.
Armando lembrava-se de uns sons de beijos salivosos que se
sobrepunham aos gemidos de excitação que percorriam o quarto,
enchendo a casa de rumores.
Num
momento em que Armando hesitava sobre o que fazer com a mulher que
tinha a seu lado e que lhe acariciava o peito com as mãos quentes,
sentiu a biqueira de um sapato mesmo junto ao nariz. Alguém lutava
pela conquista de mais espaço, perdido na escuridão das
apalpadelas. Armando desviou-se, mas logo apanhou com a fivela de um
cinto nas costas! Até parecia que o queriam castigar pelo seu acto.
Se
avançasse sobre a mulher que estava com ele, corria o risco de cair
nos braços de outra, ou de outro. A confusão seria tal que alguém
acenderia a luz e ele ficaria exposto aos olhos de todos. Então,
avaliariam o seu estado, analisariam a sua posição, fariam
interpretações sobre o movimento dos seus braços, pernas e dedos.
Fariam comparações, considerá-lo-iam pior do que Arnaldo...
Pôs-se
a imaginar por entre os olhos às escuras os pormenores do que os
outros estariam a fazer. E só fazia contas a braguilhas desabotoadas
e camisas abertas por mãos sem controlo.
-
Toma cuidado... - disse uma voz feminina a pouca distância do ouvido
esquerdo de Armando, o que o deixou envolto em dúvidas. Seria a
mulher que estava com ele ou outra? E o recado ser-lhe-ia dirigido ou
a outro? E a que tipo de cuidado se referiria? Que alcance teriam
aquelas palavras suspensas na amálgama da noite?
Armando
tinha uma das mãos entre as pernas da companheira e chegou a pôr a
hipótese de estar a ir longe demais. Não queria magoá-la, ou
ofendê-la, mas também não queria dar parte de fraco, ou de
ignorante. Era difícil conseguir o equilíbrio numa tal situação.
Se ao menos pudesse ver com clareza, em vez de se limitar a
especular, o que estaria Arnaldo a fazer, já teria um ponto de
referência. Mas só podia imaginá-lo estendido sobre as carnes
imensas da gorda, tacteando, testando, resfolegando pelas ventas de
um touro.
De
uma certa maneira, Armando estava ali como quem está numa sala de
cinema. Parecia não acreditar no que estava a acontecer-lhe.
Estendido ao lado de uma mulher, sobre uma alcatifa, como se ela
fosse a actriz de uma fita nunca vista, recortada no escuro da
visibilidade, podia tocá-la, senti-la, cheirá-la... Só não a via
como nos filmes normais. Era como se a película rodasse, embora de
luz apagada, fazendo acontecer a vida de qualquer maneira. E o cinema
talvez fosse aquilo mesmo, a visão de um espaço, de um tempo, de um
desejo, na outra margem da luz, com gente viva, palpável, sensível,
a um passo de atingir a realidade, mas sem nunca o conseguir. O que a
maioria das pessoas observava era a projecção do movimento através
da luz, só que o cinema não se limitava a isso. O cinema era muito
mais, era tacto e odor, mudança, salto entre realidades impossíveis,
realização sem materialização. O cinema era tão real que se
tornava claro aos olhos de todos, como naquela noite em que Armando
fora aportar a uma casa qualquer, de um desconhecido qualquer, e se
vira deitado na alcatifa ao lado de uma mulher, que o abraçava e
beijava, e se deixava tocar, e se insinuava, por entre pernas e
sapatos oriundos de ignotas paragens, enquanto ele elaborava
raciocínios apressados sobre a reacção que devia ter.
Incapaz
de perceber que atitude tomar, para não se ferir nem ferir a mulher
que estava com ele, decidiu sair para a rua, arrependido e confuso,
deixando para trás uma anarquia de gestos, suspiros e ditos.
Ele
não quis fazer muitas contas sobre a situação, não quis saber se
ganhava ou perdia, se procedia bem ou mal, e saiu mesmo do quarto,
andando aos tombos pelo corredor, até à porta exterior.
Certificou-se
de que tinha os dois pés no passeio, reparou que ninguém lhe
surripiara os sapatos, avaliou-lhes o brilho, olhou para a direita,
depois para a esquerda. Não sabia onde estava, talvez no Bairro
Alto, talvez em Alfama, talvez na Madragoa.
Só
via carros a passar para um lado e para o outro, com os faróis
iluminando pedaços de noite à semelhança de projectores ambulantes
em salas de cinema endoidecidas. Tudo era rápido, fugaz e
incontrolável naquela espécie de autoestrada sem limite de
contaquilómetros. Os seus olhos estavam a exagerar. Naquela zona de
Lisboa, naquele ano, àquela hora, era impossível haver tanto
movimento, tantos automóveis, tantos rostos desconhecidos a vaguear.
Mesmo
assim, Armando receava atravessar a rua, tal era a vertigem do
momento. Mas sentia que tinha que fazer alguma coisa. Pôs-se a
caminhar para a direita, sobre o passeio, olhando de viés para as
portas dos estabelecimentos comerciais que ainda se encontravam
abertos.
A
certa altura, viu uma cervejaria, cheia de gente e de ruído. Entrou,
olhou os rostos que não conhecia, encostou-se ao balcão e desatou a
beber desalmadamente.
O
empregado servia-o de forma mecânica, entregando-lhe cerveja atrás
de cerveja, como se Armando estivesse a competir com a sua própria
frustração.
Meia
hora depois, olhava em volta e continuava a não divisar saída para
o seu caso. Os mesmos rostos vagos e pálidos, o mesmo barulho, o
mesmo movimento, enchendo a cervejaria de luzes e reflexos de brilhos
que saltavam dos copos para a atmosfera carregada de fumo. Já nem se
lembrava do nome da mulher com quem estivera deitado na alcatifa até
há poucos momentos atrás. A cerveja ainda não lhe fizera
desaparecer da boca o sabor dos beijos. A lembrança das carícias
que não tivera coragem de levar até ao fim saltava-lhe diante da
vista num galope circular que nunca saía do deserto da tela. E via,
ainda, o sapato de Arnaldo tentando ganhar espaço por entre as
pernas da gorda...
Enquanto
reflectia sobre os incidentes da noite, um homem aproximou-se dele e
disse-lhe qualquer coisa que ele não compreendeu. Parecia uma língua
estrangeira. Armando respondeu com movimentos afirmativos da cabeça.
O
outro, contudo, pareceu não ficar satisfeito..., mas Armando fingiu
estar ocupado com um assunto importante e não quis saber mais do
intruso.
Quando
reparou que o estrangeiro tinha ido dar uma volta, estendeu a mão
para uma travessa que estava sobre o balcão, sem se preocupar se
havia gente a olhar para ele, agarrou num frango e veio sentar-se à
porta do estabelecimento a devorá-lo.
Pensava
na mulher que deixara no quarto escuro e dava uma dentada no frango,
pensava de quantos sapatos e apalpões estaria ela rodeada naquele
momento e dava outra dentada, pensava no rumor dos beijos que
esvoaçam no quarto escuro e voltava a dar uma terceira dentada...
Entretanto,
colocava no chão, entre os pés, os ossos de galinha, todos juntos e
organizados, para não conspurcar o ambiente.
A
primeira vez que estivera com uma mulher, às escuras, em cima de uma
alcatifa, não dera conta do recado.
O
pior de tudo é que a sua fuga para a cervejaria seria encarada como
um acto de cobardia por parte de quem se tivesse apercebido da
ocorrência, a começar pela abandonada. Voltar atrás nada
adiantaria. Até porque é sempre impossível voltar atrás, seja em
que circunstância for. Sempre que se quer voltar atrás, no fundo,
só se está a avançar noutra direcção, quantas vezes na direcção
menos aconselhável.
Se,
um dia, Armando voltasse a encontrar-se com a mesma mulher, o que
podia fazer era evitá-la, desviar os olhos, passar ao lado, dar uma
desculpa, adiar o confronto com a realidade.
A
cerveja e o sabor a frango misturados com a memória dos sapatos
deslizando na alcatifa de breu assim o aconsellhavam.
Àquela
hora da noite, Lisboa era uma cidade que não vinha no mapa. A sua
localização era uma cervejaria algures num bairro antigo, sentado a
uma porta, com ossos de frango alinhados aos pés, cadáveres
desconjuntados sem nexo para além da refeição que acabara de
tomar.
A
todo o momento, esperava que viessem apresentar-lhe a conta das
muitas cervejas que bebera e do frango que tirara da travessa sem
avisar. O pior de tudo é que não tinha um centavo no bolso. Nem
cheque, nem cartão de crédito.
Mas
o tempo passava, as pessoas entravam e saíam da cervejaria,
passando-lhe ao lado com a maior das indiferenças, e ninguém
parecia reparar que ele existia.
Armando
olhou em volta e sentiu que tinha uma oportunidade de ouro para se ir
embora sem pagar. Foi o que fez. Procurando não pensar em nada,
pôs-se a andar em sentido contrário ao que ali o trouxera;
procurando não pensar em nada, pôs-se a mexer; procurando não
pensar em nada, pôs-se a procurar com os olhos o número 27. Numa
aflição. O número 27 era a única coisa de que se recordava. Tanto
quanto se lembrava, 27 era o número da porta na qual entrara
agarrado a uma mulher e saíra pouco tempo depois sozinho ao encontro
do mundo que a noite fizera em cacos junto às fachadas vazias dos
prédios.
Não
sabia mais nada, não sabia a cor nem o tamanho da casa, não sabia
se havia três portas ou apenas uma. Só o número 27 o perseguia.
Até já nem estava certo se o número que procurava correspondia ao
da casa em que estivera até há poucos momentos antes. Mas sentia
que havia qualquer coisa com o número 27. Seria a própria mulher
com quem estivera? O que tinha a fazer era encontrá-la. Encontrá-lo.
A
certa altura, deu de caras com o número 39 e ficou subitamente
confuso, já não sabendo se procurava o 27 ou o 39. Apesar de os
dois números nada terem a ver um com o outro. Pelo menos,
aparentemente. Armando parou, olhou em volta, não viu ninguém
entrando ou saindo da residência, pôs a mão no puxador,
pressionou. Em vão. Estava trancada, não devia ser a casa que
procurava. Pelo sim pelo não, pôs a biqueira do sapato no ângulo
inferior esquerdo da porta e deu um pontapé. Nada. Desistiu do
número 39. E pôs-se a procurar de novo o 27.
Encontrou-o
algum tempo depois, quando já sentia uma náusea que lhe toldava o
olhar e o empurrava para as margens lodosas das ideias emaranhadas.
Encaminhou-se para o quarto onde estavam os colegas e perdeu as
forças. Olhou em volta, sem nada ver, sem palavras, esforçou a
visão, ainda pôs a mão em pala sobre o nariz, mas sentiu que o
mundo ia acabar ali mesmo e que nem assim ele conseguia acertar com a
cova onde estava enterrada a mulher que ele abandonara e que agora
procurava no regresso.
Quando
acordou no outro dia, deu de caras com uma enorme mancha de vomitado
sobre a alcatifa. Era o que restava do frango que ingerira na noite
anterior. Ali estava ele, aos pedacinhos, em pasta, sobre a
alcatifa..., ali estava o seu problema, aos bocados, rente à
lembrança de algo que se esvaíra...
Sentiu
um aperto no estômago. Todos se tinham ido embora, certamente
enojados com a porcaria que ele fizera e haviam-no deixado ali, sem
destino, esquecido, transformado num porco à espera de seguir para o
matadouro. O que mais o atormentava era pensar na opinião com que
ficara a mulher que deixara para trás e que provavelmente se teria
desenrascado com outro qualquer, no contorno escuro de um sapato, no
vão de uma sombra, na imensidão de uma parede sem cor, na boca de
uma rosa, num braço em volta da excitação, num corpo ardendo por
causa de um gesto... E, no meio daquilo tudo, o seu vómito.
Armando
levantou-se, quase desconjuntando-se, sempre com a mancha da alcatifa
diante dos olhos e a biqueira de um sapato a estourar-lhe na cabeça.
Deu duas voltas sobre si mesmo, sem ter a mínima ideia acerca do
sítio onde se encontrava.
Nada
ouvia, nada compreeendia, nada imaginava. A noite anterior
parecia-lhe um sonho incerto e vago. Só lhe faltava aparecer agora a
polícia a qualquer instante, prendendo-o por invasão de propriedade
alheia, ou por não ter pago a despesa da cervejaria na noite
anterior.
De
qualquer modo, era seu dever limpar o tapete. Nem que fosse para
fazer desaparecer a marca do seu “crime”. Mas isso obrigá-lo-ia
a procurar um balde com água e um pano e desinfectante e uma
quantidade de coisas ridículas. Cirandando pela casa, corria o risco
de encontrar alguém e ter que dar explicações.
Decidiu
escapulir-se, mais uma vez. Quanto antes. Porque o mais certo era
nunca vir a saber-se quem vomitara sobre a alcatifa. A não ser que
interrogassem todos os que haviam estado ali, ou que se dispusessem a
mandar analisar a mancha que fazia a eternidade daquela noite.
9
-
Deixa de fazer tanto barulho! - disse subitamente Artemísia,
continuando de costas para ele, sem tirar a mão de entre as pernas.
Armando
não respondeu, mas pôs a hipótese de ela ter ouvido os seus
pensamentos, acompanhando-o na viagem até há uns anos atrás... Às
vezes, ele falava alto sem se aperceber. Ficou preocupado. Artemísia
poderia estar a ouvir coisas imaginárias. Coisas que só aconteciam
na sua cabeça.
-
Ao menos podias respeitar o meu estado - insistiu ela. - Se estás
arrependido do que fizemos, não tenhas medo de o assumir.
Armando
permaneceu calado e imóvel. Artemísia estaria provavelmente a
sonhar com algo pouco aconselhável e não convinha dar-lhe pistas.
-
Não há nada pior do que o arrependimento - disse ela. - Sempre dei
tudo para nunca me arrepender do que fiz na vida. Não me venhas
agora com teorias culpabilizadoras. Aponta o dedo ao que fizeste e
deixa-me em paz. Talvez não fosse má ideia abrires o jogo. Afinal,
que direito tens tu de andar a questionar-me quando praticamente não
me conheces?! Quem me dera nunca te ter encontrado. Escusavas de me
ter arrastado para a tua casa, com a desculpa de me quereres conhecer
a toda a força. E até com os meus sapatos fazes problemas. Para ti,
nada está bem. A tua posição revela bem quem és, de facto -
continuou ela, sem se preocupar em verificar se ele a ouvia. - Ainda
nem te atreveste a dizer se sou bonita, ou não. Só pensas em ti e
na tua satisfação. Só te preocupas com o imediato e com
raciocínios que possam embaraçar quem gosta de ti. É triste passar
uma noite inteira com uma pessoa que nem tem a coragem e a
sinceridade de fazer um elogio. Ainda nem me deste um bocado de
carinho. Depois de me conquistares, desinteressaste-te de mim. És
frio e distante...
Armando
achou que só teria a ganhar em deixá-la falar. Acordada ou a
dormir, lúcida ou louca, ela havia de se expor. Em maior ou menor
grau. E o seu objectivo de a conhecer acabaria por ser atingido.
Ele
não seria capaz de continuar uma relação sem bases. Por uma
simples noite, ainda se compreendia, pois uma simples experiência
não envolvia necessariamente compromissos, mas prolongá-la poderia
ser desastroso. Principalmente se tudo ficasse por esclarecer. Talvez
fosse mesmo um perigo. Os arranhões nas suas costas eram prova
disso.
Nunca
lhe acontecera fazer amor com uma mulher de sapatos! Ainda por cima,
ela não apresentara motivos para a sua atitude. Inicialmente, ele
não deu grande importância ao facto. Até porque só via uma coisa
à sua frente..., só via o corpo dela, a chama dela, a vibração
dela. Mas agora que olhava para trás mais friamente, via-se obrigado
a reconhecer que o comportamento de Artemísia tinha muito que se lhe
dissesse. Uns sapatos castanhos sem nada de especial com os quais se
faz amor durante quase toda uma noite são um caso digno de reflexão.
Faziam-lhe lembrar a tropa. Por estranho que fosse. Embora a tropa
nada tivesse de sensual ou atraente. Só botas, só pés calçados,
só passos no chão. Como os sapatos de Artemísia sobre a leveza dos
seus lençóis.
Depois,
ela arranhara-o despropositadamente e virara-lhe a cozinha de pernas
para o ar. Artemísia devia ser desequilibrada. E se o não era,
parecia-o.
-
Já te disse para fazeres menos barulho! – voltou ela a pedir.
Era
inexplicável que ela falasse em barulho quando não se ouvia uma
mosca em casa de Armando. O ruído só podia estar na cabeça dela.
Por isso tinha pedido que ele respeitasse o seu estado. E falara de
arrependimento...
Armando
tinha que fazer alguma coisa para resolver a situação em que se
encontrava. Certa vez, um amigo pedira-lhe para passar a noite em sua
casa e só decidira ir-se embora quinze dias depois! Passara horas a
declamar poesia debaixo de uma cama, comera alarvemente e não
deixara ninguém dormir. Não fosse Artemísia pertencer ao mesmo
género de pessoas.
Ela
acusava-o de ser “frio e distante” porque estava a prender-se a
ele. Para a fazer descolar, havia que pôr a limpo a questão dos
sapatos.
Não
interessava o que significavam, quanto haviam custado, onde tinham
sido comprados. O que interessava era saber por que razão Artemísia
os mantivera calçados durante toda a noite, apesar de a certa altura
ele próprio a ter impedido de os descalçar.
-Tens
alguma coisa escondida nos sapatos? – perguntou Armando, de forma
repentina, procurando apanhá-la desprevenida.
A
resposta demorou uns segundos, mas veio cortante e directa:
-
Vê lá se deixas de te meter com os meus sapatos. Se me queres ver a
andar, di-lo de forma directa e frontal. Não estejas com rodeios...
-
O problema não são os teus sapatos, mas o facto de estares sempre
com eles nos pés...
-
É uma maneira de manter os pés quentes.
Armando
desatou a rir para descongestonar o ambiente e disse-lhe que estava a
falar a sério. Ela respondeu que também estava a sério.
-
Há muitas outras maneiras de aquecer os pés – argumentou ele. –
Custa a crer que o sexo não tos ponha a ferver! Se não tens
problema com os sapatos, por que razão não os tiras?
-
Não sou igual a outras que possas conhecer.
-
Disso já eu me tinha apercebido. Mas não acredito que os sapatos te
sirvam para aquecer os pés. Ainda por cima, estamos no Verão. Não
precisas de os aquecer, mas de os refrescar. Umas sandálias seriam
mais práticas, uns chinelos, uns ténis...
-
Se eu te dissesse a verdade, não acreditarias.
-
Cá estás tu a contornar as situações. Não fales no condicional,
por favor. Não podes imaginar as coisas em que sou capaz de
acreditar, ou não...
-
Estes sapatos são um assunto muito pessoal...
-
Daqui a pouco ainda vais dizer que são uma recordação de família.
-
E depois? Que mal é que tinha se fossem mesmo uma recordação de
família?
-
Os sapatos gastam-se e as recordações de família não...
Armando
pôs a hipótese de ela não tirar os sapatos para tentar esconder
algum defeito físico. Talvez ela tivesse um pé com mais de cinco
dedos... Talvez ela não tivesse dedo mindinho num dos pés... Talvez
ela cheirasse mal dos pés. Fosse o que fosse, Armando não se sentia
à vontade para abordar o assunto.
A
personalidade dela era bastante imprevisível, embora os sapatos que
usava apontassem no sentido contrário. Ela falava no ar, para o
nada, arquitectando evasivas em cima umas das outras, sem se
preocupar em explicar a sua lógica ou em analisar as suas
consequências.
-
Contigo, sei que nunca chegarei a lado algum. És egoísta, fechado,
calculista, ingrato. Armando achava que ela estava a tentar
ofendê-lo, para o obrigar a uma reacção mais concreta, para o
obrigar a dizer alguma coisa, a fazer alguma sugestão, a abrir
alguma porta. Provavelmente, não era mais explícita para o levar a
comprometer com maior facilidade. Mas ele estaria alerta e resistiria
a todas as artimanhas.
-
Há pessoas que procuram esconder as suas fraquezas atrás de uma
máscara, a máscara do silêncio - disse ela bruscamente. - É
curioso como de repente deixaste de manifestar interesse em
conhecer-me e passaste a dedicar toda a tua atenção aos meus
sapatos. Parece que te excitam! Se queres conhecer-me através deles,
só perderás o teu tempo. Já imaginaste que posso usar este
estratagema para despistar as pessoas? É preciso ter algumas defesas
para sair com um desconhecido, à noite...
Artemísia
explicou que, estando calçada, por exemplo, podia desfazer os
testículos de um homem a qualquer momento! Se não o havia feito com
Armando foi porque ele a abordara de forma correcta.
Armando
chegou a mover os lábios para lhe dar uma resposta, mas travou no
último instante, a fim de não alterar drasticamente o rumo da
conversa. Artemísia estava a provocá-lo de várias formas,
disparando sobre a presa imóvel dos ângulos mais diversos.
Procurava não dar-lhe hipóteses de fuga. Para cúmulo, ele estava
confinado a metade da cama, um espaço horizontal especialmente
vocacionado para se morrer de um instante para o outro.
Naquela
noite, Armando já tinha passado por tudo com Artemísia. O voo, o
repouso, a loucura, o impensável, a surpresa, a conquista, a
disputa, o amuo, o desespero...
A
postura dela acabava por destruir os momentos intensos que ambos
tinham vivido nas últimas horas. E ele já quase recordava a viagem
de táxi do cinema até sua casa como uma experiência de há anos
atrás que apetecia reviver. Ele já quase recordava o prazer que
conduz à sensação da morte como uma experiência vivida séculos
antes e que o futuro não saberia repetir, por mais longínquo que
fosse.
-
Quando há confiança, tudo se resolve – declarou Artemísia. - Eu
só queria ver até que ponto eras capaz de chegar, ou até que ponto
eras capaz de me julgar superficialmente. Esta noite, houve um
momento em que tive a certeza que estavas do meu lado, apesar de nos
termos conhecido há pouco tempo. Mas agora percebo que me enganei e
que me julgaste intimamente pelos padrões de uma cadela vadia que se
apanha na rua. A diferença foi que me apanhaste numa sala de cinema!
E logo depois de me teres metido no táxi trataste-me de forma
indecente, até parecendo que eu tinha passado a ser tua propriedade.
Por isso não gostaste que eu te tivesse arranhado. Para não seres
identificado com o “crime” que tinhas acabado de cometer...
-
Em poucas horas, Artemísia tivera vários discursos. E recorrera a
toda a espécie de palavras envolventes, sorrateiras, mordazes, que o
desestabilizavam. À medida que as horas passavam, a sua capacidade
de argumentação aumentava a olhos vistos, em vez de se esgotar.
Cada raciocínio que ela apresentava era uma pedra atirada às suas
costas, um gume afiado que se levantava nos ares e acabava por
atingi-lo de forma implacável. Para o prender, ou para o aniquilar.
Assim, quanto mais ele queria libertar-se, mais preso se sentia.
-
Se o teu problema é Arnaldo - continuou ela - podes estar descansado
porque nada existe entre nós. Somos apenas conhecidos. Ele chegou a
propor que tivéssemos uma relação mais íntima, mas eu nunca quis.
Não foi por não confiar nele, mas porque sempre desconfiei que
nunca suportaríamos as constantes irritações de uma vida em comum.
Como vês, consigo ser aberta desde o início de uma relação. Não
sei se é por estar na tua casa, mas não tenho dúvidas sobre ti.
Talvez seja o silêncio, o tom das paredes, a tua súbita
retracção... Pareces com medo de qualquer coisa e isso reforça a
minha confiança. Não me leves a mal por te ter chamado egoísta.
Artemísia
dava voltas atrás de voltas para o apanhar desprevenido, para o
imobilizar na rede das suas palavras em catadupa, dizia-se e
desdizia-se, voltando a insistir no que já pusera de parte. Parecia
uma borboleta sem asas ziguezagueando num labirinto. Ele teve a
sensação de que ela usava o mesmo estratagema com outras pessoas.
Porque o seu discurso era bastante mais automatizado do que a
experiência de vida que a sua idade dava a entender...
Armando
já nem sabia se o melhor era apressar o fim da relação que ambos
tinham estabelecido naquela noite ou se devia prolongar tudo até que
conseguisse realmente reunir dados para chegar a uma conclusão
segura.
-
Se queres tempo para pensar melhor no assunto, não há problema da
minha parte – disse ela, antes que ele borrasse a pintura de uma
vez por todas.
E
Armando aproveitou a deixa para dizer que realmente era mais sensato
esperar algum tempo, a ver no que dava aquela relação.
Mas
ela apressou-se a sublinhar que ele não pensasse que ela ficaria
eternamente à sua espera.
10
Armando
disse a Artemísia que não se tratava de uma desculpa, mas explicou
que se sentia perturbado por uma face pálida, de olhos negros e
cabelos escuros, que via, ainda hoje, silenciosa, encostada no tempo,
perpetuando-se para além dos limites do futuro. Era uma figura, sem
palavras, que lhe aparecia de vez em quando, sobretudo nos momentos
em que estava só. Sentia-se atordoado, nessas ocasiões, ouvia
zumbidos dentro da cabeça, deixava-se levar por um sentimento de
nostalgia, afundava-se numa tristeza inexplicável, entregava-se aos
remoinhos da fantasia, mas tudo se resumia a isso mesmo, a uma breve
passagem de memórias, sem fundo nem tecto, onde nada fazia sentido,
nada tinha forma real, nada parecia capaz de alterar a sua vida.
Por
várias vezes tentara estabelecer diálogo com essa mulher. Em vão.
Naquela noite, via-a com nitidez, bem lá no fim da recordação.
A
sua presença obrigava-o a recuar nos anos de forma inquestionável e
definitiva. As duas coabitavam o seu espaço de forma paradoxal e
profunda.
Armando
estava pronto a garantir que aquela mulher que vinha do seu passado e
que tanto o inquietava era mesmo Artemísia, uma outra Artemísia,
uma espécie de sombra com cabelos negros que resistia na última
fronteira da sua lembrança. E ela estava ali, a seu lado, na cama,
sem ter consciência do que fazia despoletar dentro dele e dos anos
que haviam antecedido aquele momento.
A
mulher que o visitava tinha uma forma própria de sorrir, acanhada e
felina, ao mesmo tempo. Ele alimentara o sonho de casar com ela, de
viver a seu lado, mas agora não sabia, não tinha a certeza sobre
qual delas viera das entranhas do tempo para se deitar com ele
naquela noite ou para surgir através da porta que os anos haviam
deixado entreaberta. Uma e outra tinham idêntica maneira de pensar
através dos olhos...
Para
responder a Artemísia, para resolver de vez o assunto com ela,
Armando tinha que dizer o que lhe ia na alma, o que sentia, o que
receava, o que previa. Ela podia não gostar de ser enclausurada no
seu passado, ao ponto de nem ele próprio saber o que ela significava
na sua vida, mas não podia deixar de fazê-lo, se queria ser
verdadeiro consigo próprio.
Procurava
descortinar uma luz nítida, uma forma definida, um reflexo concreto,
que saltasse das cavernas do tempo e o reposicionasse no mundo, mas
quanto mais se esforçava para compreender o que se passava com
Artemísia mais dificuldade tinha em conseguir os seus objectivos.
O
facto de ela lhe parecer alguém que tinha ficado preso na sua
recordação excitava-o, mas, por outro lado, também o atemorizava
porque não lhe permitia ter completo controlo sobre a situação.
Olhava
para a mulher estendida a seu lado na cama e sentia que podia ter
ascendente sobre ela. Porém, logo a seguir recuava ao reparar nos
seus sapatos. Recuava e encolhia-se só de pensar no que eles
poderiam conter. Uns pés, com certeza. Uns dedos de pés. Faltava
saber quantos. E estudar minuciosamente o seu tamanho...
Armando
não era capaz de tolerar uma situação de tal forma obscura. Se
mantivesse a ligação com Artemísia, nunca chegaria a saber quem
era ela de facto. O envolvimento afectivo impedi-lo-ia de ver com
clareza. Por mais anos que vivessem juntos, a emoção havia de
vencer tudo à volta. Por mais transparentes que fossem. Por mais
sinceros. Por mais fiéis.
Armando
recuou no tempo e recordou o dia em que foi castigado por se ter
atrevido a escrever à pessoa que Artemísia lhe fazia lembrar. Tinha
acontecido há muitos anos. Escrevera um bilhete simples, que falava
de saudades, conversas ao nascer do sol, carícias na face. A mãe
interpretara negativamente a sua atitude, descobrindo no texto
intenções obscuras e reprováveis. Dera-lhe uma tareia com o sapato
que tirara prontamente do pé. Nas mãos, nas costas, nas pernas, no
pescoço. Armando sentiu-se humilhado e só. À noite, o problema
agravou-se, quando o pai, ao saber do malfadado bilhete, o pontapeou
no rabo com a biqueira do sapato, uma dor que se prolongou pelos anos
fora.
Ele
nunca esqueceu as agressões. E a mulher nunca chegara a saber o
motivo pelo qual Armando se afastara dela definitivamente. Nunca
tivera a certeza de nada. Nunca sonhara. Assim, ele deixara para trás
uma pessoa que o havia marcado de forma singular. Para que todos a
vissem. E desejassem. Uma mulher sem nome e sem palavras, só com
gestos, que Artemísia lhe fazia lembrar de maneira incontrolada.
-
Tenho que ser realista - disse ele visivelmente alheado do que se
passava à sua volta. - Não me é possível tomar uma decisão tão
importante em meia-dúzia de horas. Ainda por cima porque me fazes
lembrar essa pessoa que continua a ocupar um lugar importante na
minha vida. Não sei se alguma vez conseguirei libertar-me dela.
Vejo-a sempre que estou só, em toda a parte, em todos os momentos,
em todas as situações. E quando não a vejo só me preocupo em
perceber por que razão assim é, por que razão ela se ausenta sem
explicações, por que razão não é possível reconstruir a ponte
que se interrompeu com o passado.
Era
uma questão de coerência para Armando. Podia sentir-se atraído por
Artemísia, até pelos seus sapatos, mas recearia sempre que ela
fosse de outro. Por ser outra. Não lhe bastava o que vivera naquela
noite para a identificar de forma inquestionável.
Ele
não tinha projectos. Limitava-se a viver os dias que lhe iam saindo
em sorte. Talvez porque nunca chegara a desprender-se do passado, o
futuro nunca tivera grande significado na sua vida.
Muita
gente estava no lado oposto, vivendo para o sonho e para a
irrealidade, em busca de ser feliz.
Ele,
por seu turno, esperava, eternamente, a rematerialização dos
acontecimentos que o tempo devorara.
Antes
de conhecer Artemísia, havia tentado por mais de uma vez refazer o
edifício do passado que a vida lhe desmoronara. Mas nunca acertou o
passo com o tempo. Chegara sempre demasiado tarde. Ou demasiado cedo.
E, então, riam-se dele. Ou pelo menos dava essa ideia. O que o
constrangia. Os outros eram sempre mais expeditos, mais eficazes,
mais decididos, compreendendo tudo mais rapidamente. Ele hesitava,
pensava melhor, receava enganar-se e perder as referências,
confundia as coisas, desconhecia as consequências, media demasiado
os riscos. E nunca dava o primeiro passo. Assim, via os
acontecimentos passarem-lhe ao lado em acenos de comboio que não
pára na estação para desaparecer na curva mais próxima. A sua
terra estava resumida aos pés, aos nervos das mãos, aos braços, ao
pescoço, ao apartamento para onde trouxera Artemísia, a mulher que
lhe fazia lembrar todas as contradições e desafios. A sua Lisboa
começava e acabava nele mesmo, de um braço ao outro, de uma palavra
à outra, de uma pele à outra.
Não
podia voltar a cometer os erros que o haviam marcado de tal forma.
Por isso, tinha que se refugiar em algum sítio, agarrando-se a uma
tábua segura. Impunha-se evitar o afundamento no desconhecido. Não
queria que voltassem a rir-se dele como nos tempos da escola,
deixando-o corado até às orelhas por uma coisa de nada, um breve
rumor, uma ligeira deslocação de cadeira, um simples olhar sobre a
claridade que a janela projectava rente ao soalho...
Ninguém
saberia do seu caso com Artemísia. Se algum dia lhe fizessem
qualquer referência a ela, responderia de forma evasiva, para não
se comprometer.
Havia
qualquer coisa nela que o atemorizava, que o fazia hesitar e depois
recuar. Nada de concreto, mas algo ameaçador, um peso indefinido que
podia destruí-lo a qualquer momento. Tinha a ver com os arranhões,
com o sumo de morango, com a deambulação do discurso. Tudo o que
ela fazia significava destruição ou construção. A sua entrega era
uma recusa, uma recusa de palavras.
Eram
quatro horas da manhã e não havia maneira de Artemísia dizer que
tinha de ir para casa. Todavia, Armando não queria mandá-la embora
sem mais nem menos. O importante seria que ela não esperasse pelo
amanhecer. Mas que também não se sentisse rejeitada. Para evitar
alguma reacção menos controlada. Ele tinha a sensação de que
podia acontecer algo a qualquer momento, até ao último minuto
daquele encontro. Uma tragédia que poderia até nunca se consumar,
mas que constituiria sempre uma ameaça.
-
Depois telefono-te a dizer alguma coisa... – balbuciou Armando com
embaraço.
Não
houve resposta do outro lado, mas ele sentiu que ela teve um
sobressalto. Pelo menos, não tinha havido borrasca. Fez-se um
silêncio prolongado que Armando aproveitou para ir ao telefone e
chamar um táxi.
Minutos
depois, ela sentou-se no colchão e pôs-se a recolher peças de
roupa aqui e acolá. Fora mais fácil do que ele pensava.
Armando
viu o corpo dela erguer-se, cambaleando, e desaparecer aos poucos sob
o vestuário com que se ia cobrindo. Susteve-se numa perna, depois na
outra, segurou-se à parede, retesou os músculos, apertou um botão
nas costas, sacudiu o cabelo por entre a ondulação das sombras que
vagueavam no quarto, ajeitou a gola da camisa... Fez tudo tão bem,
de forma tão correcta e sóbria que Armando chegou a perguntar a si
mesmo se não teria exagerado no retrato que fizera de Artemísia.
-
Não me leves a mal – murmurou ele. – Mas tu é que disseste que
não te importavas de esperar algum tempo.
-
Não penses que me vais ridicularizar depois de tudo o que fizeste
esta noite! – retorquiu ela subitamente alterada.
-
Não fiz nada sem o teu consentimento...
-
Sabes muito bem que eu não queria vir contigo. Quando as relações
são apressadas, há sempre um que se farta antes do outro. O que é
excessivo chateia e a verdade é que esta noite fomos longe demais.
-
Ninguém te obrigou a nada...
-
Há muitas formas de condicionar as pessoas...
-
Se calhar, foi o que me fizeste durante as últimas horas...
-
Não fujas ao assunto!
-
Estás a provocar-me...
-
Não vale a pena procurares desculpas...
-
Vê lá se isto não acaba no meio de insultos e calúnias. Depois
dos momentos que passámos juntos, seria estranho que nos
separássemos com pedras na mão...
-
Dás a ideia de estar só à espera de uma oportunidade para desferir
o golpe final na nossa relação.
-
Não se pode matar o que nunca nasceu...
-
Então o que estive a fazer na tua casa até agora?!!
-
Isso deves tu saber melhor que eu...
-
Estás a sacudir a água do capote.
-
Eu só me entendo com pessoas sinceras. Se te pões por aí aos
rodeios, não vamos a lado nenhum.
-
Mais coisa menos coisa, falta pouco para me expulsares da tua casa...
-
Se calhar, era isso mesmo que gostavas que eu fizesse.
-
Eu não tenho motivos para me ver livre de ti... Tu é que podes
ter-te arrependido do compromisso que assumiste comigo.
-
Não posso arrepender-me de uma coisa que não fiz.
-
Afinal, em que ficamos?
-
Daqui a uns dias, telefono-te a dar novidades...
-
Uns dias são muito tempo. Podem até nunca chegar... Não quero
voltar a ver-te na minha frente!
-
Por favor, não queiras tomar conta da minha vida..
-
Eu disse para me desapareceres da vista! Não me digas que também és
traumatizado!
-
Nunca te exigi nada, nunca te pus condições, nunca te encostei à
parede...
-
És um inseguro!
-
Julgas que me chateia saber que foste para a cama com este e com
aquele?...
-
Quem te disse que eu fui para a cama com este e com aquele? Desde
quando estou proibida de usar a minha liberdade? Queres confundir-me
com quem? Com essa tal fulana sem pudor que passa os anos a olhar-te
através de uma parede infinita?
-
Escusas de envolver outras pessoas nesta discussão...
-
Desde quando é que fazes as regras do nosso diálogo?
-
Qual diálogo, qual quê? Está visto que não nos entendemos...
-
Não nos entendemos porque não queres.
-
Como posso entender-me com uma pessoa que faz amor sem se descalçar
e que ainda por cima me deixa todo arranhado?!
-
Já imaginaste se eu me pusesse aqui a descrever o que me fizeste
esta noite? Nunca mais nos despachávamos. Os arranhões fizeram
parte do envolvimento físico. Estavas tão excitado que nem te
apercebeste de nada. Eu podia ter-te cortado aos pedaços sem
qualquer problema.
-
Pois olha que cortaste mesmo...
-
Não sabes o que é cortar uma pessoa aos bocados!
-
Se me acontecer alguma coisa, não precisas de ficar com problemas de
consciência.
-
Metes-me em cada uma que já não sei bem o que digo.
-
Não consigo olhar para ti mais do que um segundo.
-
Como se vê, és tu quem está a repelir-me.
-
O táxi deve estar a chegar.
Os
dois deixaram o apartamento e vieram a discutir no elevador como duas
pessoas que vivem juntas há dezenas de anos.
Chegados
à rua, Armando voltou a questionar os motivos pelos quais Artemísia
nunca descalçara os sapatos. Ela replicou que ao preocupar-se com um
pormenor tão insignificante ele só queria encobrir alguma coisa.
-
Isso não é razão para te abespinhares...
-
Mas foste tu que não paraste de te meter comigo toda a noite. Foste
tu que nunca te cansaste de fazer perguntas, tentando saber coisas da
minha vida...
-
Posso ser tudo menos acéfalo. Eu seria incapaz de estar contigo e
não tentar conhecer-te. Sei que não o consegui por causa dos
sapatos. E tu nunca os tiraste porque sabias que eu ficaria a saber
tudo... No fundo, são os teus sapatos que nos separam. É por causa
deles que não nos entendemos.
Para
Armando, o facto de Artemísia não ter tirado os sapatos era sinal
de que alguma coisa ficava por revelar na sua vida. Mas ela replicou
que não tirara os sapatos apenas porque não se sentira à vontade
para o fazer. De qualquer modo, não se importava de pagar a despesa
de algum estrago que tivesse feito no lençol.
Ele
não queria saber de estragos no lençol, não queria saber de contas
disto ou daquilo, não queria estar sempre a insistir na mesma coisa,
para que não parecesse que ficara obsecado. Por isso, foi com alívio
que viu o táxi aproximar-se e abrandar a marcha junto do passeio em
que ambos aproveitavam todos os minutos para brandir argumentos.
No
instante em que o veículo parou, Artemísia pedia desculpa pela
confusão que deixara na cozinha, garantindo que não partira
qualquer peça. Logo a seguir, abriu a porta do táxi e sentou-se no
assento de trás com a rapidez de alguém que acaba de escapar às
garras do demo. Na precipitação, um dos sapatos quase lhe saltou do
pé, o que deixou Armando estático, perplexo, inquieto. Mas
Artemísia não perdeu o sangue frio e limitou-se a enfiar de novo o
pé no sapato, com ligeireza e convicção. A seguir, fechou a porta
com estrondo. Mas, quando o veículo já se encontrava em andamento,
Armando reagiu, por fim, pôs-se a correr atrás dele, batendo nos
vidros, conseguindo abrir a porta que o separava de Artemísia e
exclamando, enquanto se atirava para dentro do carro:
-
Deixa-me só dizer-te mais uma coisa...
FIM